havia um pátio
de onde caíam laranjas do céu maduro
e andorinhas abatidas com bodoques
que disputavam o lago de cimento
com as patos recém afogados
havia um quarto de vontades proibidas
e um tanque dágua que refletia seu embaraço
havia tios falsos, tias domésticas e outros parentes
todos pobres, vagabundos, operários
amantes do samba e do rock
o clê com seu olhar lento e sapatos largos
com sua pintura torta e móveis perfeitos, mas complicados
sua paralisia vermelha no sofá fracassado
o zé com sua loucura ruiva
o ivo e suas cóleras sempre fartas
suaves pátios cobertos pelos lençóis lavados
e pelo canto das vizinhas marias,
todas, todas caídas da escada
havia a sala das danças de infância
da roupa nova e toca-discos de vinil
contra os quais lutava minha avó
e sua lembrança dos nove pecados
havia uma cozinha na qual ela matava galinhas rebeldes
e contava, nas tardes de tempestade, histórias de lobisomem
e de mula sem cabeça, regadas a pão e café com farinha,
a fogão à lenha e a antigos retratos
recortes de filhos idos,
havia casebres solitários naquele largo pátio,
roupeiros onde se guardavam a alma
os dias e as noites de trabalho
havia a porta da frente e o corredor coberto
com pedaços de estopa e lã
troços de mundo onde merendavam a morte
meus pequenos fantasmas borrachos
(de Eliane Marques)
4 comentários:
Havia tantos adultos naquelas memórias de infância. Há muitas crianças brincando com as palavras da poeta.
Eliane: obrigada pelo baú repleto de emoções.
Fernanda Nunes
Belíssimas imagens de pátios e memórias;Gostei imensamente:)
abraço!
As lembranças da infãncia nos são sempre lindas e ao mesmo tempo tristes, quando adultos já vemos tudo mais transparentes e sem muita inocência>>> Adorei o que vooê escreveu!!!
.."havia a sala das danças de infância
da roupa nova e toca-discos de vinil"..
AMei o que escreveu prima!=D
Carla Vanessa-Sm
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