sábado, 28 de fevereiro de 2009

frase do dia

... há que lembrar para poder esquecer, por que o que não se recorda, não se esquece, se repete.

(Marcela Villavella, em “La palabra del silencio”, de Actas – Segundo Congresso Internacional de Poesia y Psicoanalisis, Editorial Grupo Cero)

alguma poesia

descubro a estranheza
do mundo
num jardim destroçado
da rua dos Prazeres
esquina dos Afogados

num relance, o banal
se revela denso e
os galhos as folhas
são assombro e silêncio

o que era segurança
se esquiva –perdido
falo: planta jasmim

mas a voz não alcança
o fundo do abismo

(fragmento do poema “Nasce o Poeta”, do livro “Toda poesia”, de Ferreira Gullar, Editora José Olympio)

tirinhas


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

era uma vez ...

O BARÃO
(de Eliane Marques)

Sua cabeça enorme incomodava a tranquilidade monótona das nuvens. Se quisesse, poderia usar a barba rala, sempre na espera do corte, para varrer o pó das estrelas, qual a eternidade de sua altura. Se quisesse, ainda, poderia fazer bom uso das mãos grossas e pesadas para lixar, em segundos, os portões de ferro do céu. Escolheu não fazer nada. Escolheu fazer nada. Eu detestava beijá-lo, havia de ficar na porta dos pés para alcançar suas bochechas azedas, enquanto ele se vergava até o chão para alcançar as minhas. Aquele gigante adensava o meu silêncio de menina comportada em visita à casa da tia professora. De sua garganta de “sete quedas” descia uma voz vulcânica, uma voz javélica a falar detrás da sarça ardente qualquer coisa inaudível. Era insuportável o tilintar oco que soprava ausente a fumaça de seu cigarro.
Eu detestava o “abrir de porta” sonolento da dona da casa, minha tia, o seu “fazer sala” distraído que preferia àquelas visitas o "assistir à televisão" ou o "ficar fechada" em seu quarto contanto as pedras do jogo de amarelinha de seus pesadelos; eu detestava o desagrado dos meus primos, gigantes como o pai, que estavam constantemente em debandada quando chegávamos. Não sei por que inventavam passeios tão desagradáveis quanto me era a companhia dos meus próprios pais. Eu me via incivilizada, a matar toda aquela gente, a comer seus cérebros inúteis com katchup e, ao final, refugiada no calor da rua, me via a saborear a sobremesa de seus enterros com bolo de chocolate.
O Barão nascera em São Sebastião e por lá conhecera minha tia. Ele era de uma família de origem francesa e haussá. Herdara aquela corzinha que inveja os negros e ameaça o império dos brancos. Depois do casamento, a tia Eulália, com as duas filhas pequenas, abandonou a cidade onde fora estudar e se abrigou na casa de sua irmã Eurídice. O marido viria depois.
A tia Eurídice e a abuela Herculana o esperavam fazia muito tempo. Cada viajante que atravessava a praça era espiado por elas do alto de uma janelinha tímida, no segundo andar da casa. Porém o cunhado e genro, portador de título de nobreza, se negava a descer da Maria Fumaça que uma vez por semana aportava na estação da praça, próxima à morada onde as parentas espiãs aguardavam com sincera esperança o fracasso do desembarque.
Num inverno de julho, atravessou a praça coberta de sereno, em direção à casa da Eurídice, um homem tão comprido quanto o trem que o trouxera. Carregava consigo uma sacola monstruosa, de cor suja, que lhe agarrava com firmeza às costas, como os bebês que as jejes de ganho carregavam pelas ladeiras irregulares de São Salvador. Sua chegada, com aquela bolsa, criou grande expectativa nas crianças, em torno de cinco, entre as baronesinhas e seus primos. Todas esperavam receber belos brinquedos do tio herdeiro de nobres. No dia seguinte, depois de longo sono, banho com sal grosso, e bem alimentado pela excelente comida preparada pela negrinha da casa, como se autodenominava a minha tia Eurídice, o viajante se decidiu distribuir os regalos. Dentre outros destroços, vinham cativas na bolsa, dez bonecas velhas, recolhidas de algum abandono da infância: as que tinham cabelo, haviam perdido a cabeça; as que tinham pés, tiveram roubadas as pernas; nenhuma possuía mãos e a única que falava, apenas em francês, pedia a lobotomia imediata e calva ou a peruca da abuela que roçava amarela num cabide de arame de armário. As meninas adoraram o cemitério de bonecas. A abuela e a Eurídice pensaram, em íntimo segredo, que a ilusão daquele desembarque fora tão triste quanto a falsidade do título de nobre.

verso b responde !!!


Interpretar, para a psicoanálise, significa descobrir alguma coisa ?


A psicoanálise, mediante a operação de interpretar, transforma em outra coisa (diferente) a matéria-prima sobre a qual operou. Portanto, não revela nenhum sentido, não descobre nenhum sentido, produz um novo sentido. Não se trata, também, da descoberta de uma verdade. A interpretação é um trabalho que gera como produto algo que não preexistia como tal. À psicoanálise não interessa a permanência de nenhuma verdade, já que seu achado ou sua produção coincide com sua transformação. A verdade é como a loucura - a persistência das sensações de verdade ou de loucura, além dos instantes sempre relativos, em que ambas se mostram como tais, é mera ilusão.


(do livro "Freud e Lacan - Falados 1", de Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero)

traduceiro

a lua e a morte

(García Lorca, 1919)

A lua tem dentes de marfim.
Quão velha e triste assoma!
Estão os álveos secos,
os campos sem verdores
e as árvores murchadas
sem ninhos e sem folhas.
Dona Morte, enrugada,
passeia pelos salgueirais
com seu absurdo cortejo
de ilusões remotas.
Vai vendendo cores
de cera e de tormenta
como uma fada de conto
má e enredadora.

A lua comprou
pinturas da Morte.
Nesta noite turva
está a lua louca!

Eu, enquanto isso, ponho
em meu peito sombrio
uma feira sem músicas
com tendas de sombra.

(García Lorca, Antologia Poética, tradução de William Agel de Mello, Ed. Martins Fontes, SP, 2001)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

verso b responde !!!


Há desejo de morrer? E há que interpretá-lo?

Eu penso que não há desejo de viver, mas não sei se há desejo de morrer. Não creio que possa existir desejo de morrer. Freud disse que a única maneira pela qual posso me suicidar é me confundir com o outro, quer dizer, o único que posso fazer é assassinar, o único que posso fazer é desejar a morte do outro, não posso desejar morrer, ainda que o diga. Porém posso não desejar viver, que não é o mesmo.

Ademais desejar morrer não se pode por que não há possibilidade de representação de nenhum “morrer” no desejo. Não se pode desejar o irrepresentável.

A mim, me satisfaria se uma boa interpretação de vocês me permitisse viver seis horas mais.
De manhã à tarde, do horário do Brasil ...


frase feita

(obra de "os gêmeos")

O indivíduo é um tumulto, um emaranhado de identificações (...) que mobilizam e alteram a paz dos sepulcros.

(de Juan Carlos de Brasi, do livro “La Explosión del Sujeto”, Editorial Grupo Cero, p. 99)

verso b



Deslumbramentos

(Cesário Verde)


Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa, aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana d’Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

alguma poesia

Para Lindsay

(de Allen Ginsberg)

Vachel, as estrelas se apagaram
a escuridão caiu na estrada do Colorado
um automóvel se arrasta lento na planície
pelo rádio ressoa o clangor do jazz na penumbra
o inconsolável caixeiro viajante acende um cigarro
Há 27 anos em outra cidade
eu vejo sua sombra na parede
você de suspensórios sentado na cama
a mão de sombra encosta uma pistola na sua cabeça
seu vulto cai no assoalho
(obra de "os gêmeos")

Ei você! É... Você mesmo. Com 33 anos já fez alguma coisa, já construiu um prédio, costurou uma camisa, ganhou uma maratona... já escreveu um poema?

Bem, escreva para este blog. Queremos saber o que anda fazendo da sua vida.
E, enquanto escreve, leia também a última parte de “A Idade de Cristo”, do exageradamente amado Nelson Rodrigues, seguida da leitura do Raimundinho, a cargo da psicoanalista Barbara Corsetti, mui metida na “vida como ela é”.



As Editoras

no divã, com Nelson


A IDADE DE CRISTO

PARTE FINAL

O mártir

Nem o Asdrúbal havia entendido, nem os companheiros. Raimundo foi levado para um canto. Explicou, baixo e iluminado:

_ Vocês são burros! Vocês não entendem! Prestem atenção: o Asdrúbal é bonito, tal e coisa, mas é um débil mental. Eu soltei a piada. Com a continuação, o efeito vai aumentando.

Os outros se entreolham. Raimundo pede a colaboração de todos:
_ Para o negócio dar certo, cem por cento, preciso que vocês ajudem. Vocês têm que me ajudar.

A partir de então, aquele Apolo de escritório (bonito demais para um homem) começou a sofrer. O despeito de todos os homens da firma estava encarniçado contra ele. Esfregando as mãos, numa satisfação sombria, o Raimundo sussurrava para um e outro que o Asdrúbal estava já em desintegração. Dizia: - “Um crime perfeito. Com uma piada, vou matar um cara!” Parecia-lhe que o nosso código, ou qualquer código, é tão sem imaginação que jamais cogitou da piada criminosa. O fato é que, a toda hora, o Asdrúbal recebia bilhetes, cartas anônimas. Alta madrugada, em casa, o telefone batia. Uma voz qualquer dizia-lhe:

_ Com tua idade, Cristo já estava morto e enterrado! E você?

Era a piada do Raimundo, que o perseguia por toda a parte. Aquilo espalhou-se. Amigos, simples conhecidos batiam-lhe nas costas:

_ Realmente, você não fez nada. Até agora não fez nada. Com a tua idade, Cristo...

Outro qualquer teria aceito a piada como tal. Mas o Raimundo julgava-o um pobre de espírito. Jogava com a ingenuidade do companheiro. E, todas as tardes, a cena se repetia. Raimundo saia com o Asdrúbal e, na rua, começava:

_ Cuidado, rapaz! Você ainda não fez nada! Que é que você fez?

Crivava-o de perguntas curtas e incisivas: - “Você fez a camisa que veste? O sapato? Está vendo aquele edifício? Você fez algum prédio? Não. Não fez nada. Pois olha! Na tua idade, ou menos, Cristo foi crucificado!” A principio era só o Raimundo. Depois todos o imitaram. O Asdrúbal não tinha um segundo de sossego em lugar nenhum. Aquela piada, meio ou totalmente imbecil despertava nos outros um élan diabólico. Um dia, uns dez companheiros, inclusive o Raimundo, levaram o Asdrúbal para um bar próximo. Lá, bebendo e comendo batatinhas salgadas, passaram umas duas horas repetindo: “Aos 33 anos, Cristo já estava enterrado, e você?” Batiam-lhe nas costas: - “Você não fez nada! Nada!” ele não dizia uma palavra. Saturou-se da pilhéria. Súbito, ergueu-se:

_ Eu não fiz nada! Mas agora, neste momento, vou fazer alguma coisa!

E, ali, diante dos companheiros, petrificados, puxa o revólver e vara de balas o autor da piada.

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PALAVRA DA PSICOANALISTA

O que Asdrúbal não sabia é que todo o “élan diabólico” que despertava em cada um que repetia tal frase criada por Raimundo era justamente o lado perverso e cru do humano.

Podemos considerar dois lados na frase plantada pelo Raimundo. O próprio personagem sugere com a frase – Com uma piada vou matar um cara! – Ai está o desejo de Raimundo.

Lembremos que no princípio da história, Raimundo dizia em frente ao espelho – porque não meto uma bala nessa cara? Essa era sua verdade, esse desejo de acabar com o que via em sua frente, em seu próprio sujeito. Era insuportável o que acreditava ver em si.

A busca por encontrar a prova de que a morte estava próxima caso descobrisse uma doença em seu pulmão, quando então poderia se entregar para a morte, estava em cena.

Porém, o que nosso personagem não supõe é que existe uma verdade plantada nele, que ele não conseguia nem pensar em trabalhar, ou seja, uma verdade que ela não queria abandonar.

Para a Psicoanálise a resistência que o sujeito monta para não chegar em um determinado ponto de dificuldade é a maneira encontrada pelo psiquismo de não deixar de funcionar daquele determinado jeito. Teria então que abandonar algo muito marcado em si. Raimundo não queria nem saber do que lhe causava tanta ojeriza de si mesmo. Poderia ser uma frase que trazia dos pais, uma verdade já vivida por eles e que carregava em sua vida, uma repetição de algo que alguém desejou para ele, ou que viu alguém realizando.

A construção de uma frase que vai matar o outro é tão forte quanto um tiro, tão forte quanto uma lei. Ela pode construir ou destruir um sujeito, conforme o que escuta e associa. Todos os significantes marcados na vida de Raimundo estavam no dito – Você não fez nada. E foi essa afirmação que Raimundo escolheu para Asdrúbal. A imagem de Asdrúbal permitiu a Raimundo que tal frase fosse destinada a ele. O que Raimundo viu em Asdrúbal está marcado ali, inconscientemente.

É o inconsciente jogando para todos os lados nessa frase.

Podemos perguntar porque Asdrúbal acreditou nela. Podemos supor que o que fez Asdrúbal foi realizá-la. Até não saber o porquê da frase direcionada para si, Asdrúbal não conseguia acreditar que ela estava sendo dita para ele. No instante em que se apropriou dela fez o que lhe coube, o que lhe veio, o que supôs ser pedido para ele.

O desejo de morte já estava em Raimundo. Asdrúbal apenas realizou o que Raimundo lhe pedia.

Assim o inconsciente realiza.


Até a próxima.

Barbara Corsetti

domingo, 15 de fevereiro de 2009


verso b responde!!!

_ Pode falar dos atos falhos da ciência?

_ Sim claro, isto é fundamental. Todas as ciências modernas progridem no erro. Toda ciência progride na retificação do erro. Não há tratamento psicoanalítico sem que o psicoanalista cometa um erro. Às vezes os jovens vêm assustados à supervisão e dizem: “troquei os pés e lhe disse uma bobagem”, e eu lhes digo “não importa por que se você não diz nenhuma bobagem e não troca os pés é uma máquina. Então não pode com a transferência. Há um sujeito na ciência. Por que não cometerá erros? Esses são os atos falhos da ciência, o que ocorre é que tem que se interpretar, tem que se retificar. Esse é o modo das ciências avançarem.
(do livro “Siete Conferências de Psicoanalisis en La Habana, Cuba", de Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero)

poema de bolsa


de Marcela Villavella

Não caminhes sozinha pela rua

É tarde,

E a noite é um alto escarpado,

Faz frio, não te afastes de mim...


Escuto estonteada

O rumor dos pássaros que crescem

No ninho de qualquer mão.


Alguém canta ao longe?

Alguém cozinha pequenos manjares?

- morangos com pimenta - ?

para o alvorecer?


E esta umidade nas costas,

é sangue?

É teu sangue?

e está fresco?


É tarde,
não caia no silêncio
.
a noite é um alto escarpado,

me precipito a cada instante...

é tarde,

e no caminho até você

sopra um vento

severamente intenso para meu corpo.


É tarde, faz frio...

A noite, esse escarpado...

Permita-me chegar em casa

Hoje quero descansar

de nós,

de mim.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

alguma poesia




Penso – o Mundo é restrito –
E a angústia – absoluta –
E há sofrimento,
Mas e daí?

Penso – a Morte não tarda –
A maior Fortaleza
Acaba-se em Ruína,
Mas e daí?

Penso – que o Paraíso
De alguma forma – é digno –
Outra Equação – possível –
Mas e daí?


(de Emily Dickinson, do Livro: ALGUNS POEMAS, São Paulo, Iluminuras, 2008; tradução de José Lira)

verso b, responde!!!!




_ Você se referiu aos desejos sexuais reprimidos da infância, nos adultos...?

_ A sexualidade reprimida na fase adulta não é inconsciente, é pré-consciente, é como quando eu me nego a contar a uma mulher o que fiz com outra, isso não é inconsciente, é pré-consciente. Quer dizer, com um pequeno esforço se consegue. O pré – consciente não está na consciência, porém com um pequeno esforço de atenção, consigo trazer à consciência o que está pré-consciente. De outro lado, o inconsciente não pode ser trazido à consciência, com nenhum pequeno esforço, nem com um grande esforço de atenção.
O único que chega até a consciência são os efeitos-produtos do trabalho inconsciente, não o inconsciente.

(do livro “Siete Conferências de Psicoanalisis en La Habana, Cuba, de Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero)

fala cine

A VIDA AO REVÉS

(comentário da poeta e psicoanalista Lúcia Bins Ely ao filme
O Curioso Caso de Benjamin Button, de David Fincher)

O Curioso Caso de Benjamin Button realiza a fantasia de inverter o curso natural da vida humana. Benjamin nasce “velho” e, à medida que o tempo passa, seu corpo rejuvenesce.
Me impactou o filme não apresentar o que gostaríamos de ver: a superação do envelhecimento, da morte... . Justamente a obra demonstra que as questões básicas do humano seguem ainda que se altere o curso biológico da existênca, invertendo-se o envelhecimento pelo tornar-se cada vez mais jovem. Apesar desta invenção/inversão, a vida humana segue sendo finita: como todo homem, Benjamin é mortal (morre bebê, no colo de sua ex-mulher – mãe de sua filha- mas morre!). Benjamin sofre os reveses pela passagem do tempo, mesmo que rejuvenesça as transformações ocorrem, e essas lhe causam impacto. Exemplo disso é quando o personagem diz se sentir diferente de um dia para o outro, quer dizer, as mudanças ocorrem e ele as vive. E por outro lado, apesar de ter nascido muito diferente, há aquelas coisas do humano das quais nem assim escapa, tais como, a morte, a perda de pessoas amigas, a sexualidade.
Contudo, por mais diferentes que nos pensemos, há aquilo em que somos semelhantes aos outros humanos. As semelhanças são que nascemos de pai e mãe (de um ato sexual), somos mortais e que alguém nos humanizou.
Miguel Oscar Menassa nos fala da maior ferida narcísica do humano que é saber que o mundo existia antes de “eu” nascer, e que tudo (o mundo, a cultura) vai continuar depois de “minha” morte. Menassa também diz (no livro: Freud e Lacan – Falados – 1, do Editorial Grupo Cero) que um ser humano é aquele que vai morrer e ainda assim faz algo que possa servir a outros. Podemos pensar que Benjamin fez uma opção desse tipo no momento em que abre mão de sua convivência diária com a filha para deixar que outrem fizesse a função de pai para ela. Todavia é neste ato que o próprio Benjamin opera a função paterna, pois provê a vida da filha deixando-lhe, inclusive, os bens materiais que tem em seu nome e no nome da mãe desta. E, mais importante, a distância espacial que se inaugura entre eles é rompida pela escritura já que, a partir daí, deixa junto a seu diário, cartões postais com escritos dedicados à filha. É justo este ato que o faz perseverar na função paterna.
O pai para esta filha, é um pai que escreve. Ela o conhece através de sua escritura.
O filme nos faz cair na real da condição humana: as limitações de cada um – o inexorável da mortalidade.
Benjamin Button, esse estranho sujeito que viveu a inversão do tempo, não deixou de padecer de seus vieses, rejuvenescendo também foi perdendo algo... Benjamin, como todo o sujeito, era falho.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

POESIA E PSICOANÁLISE



Hoje deixarei todo o sonho para poder sonhar.
Abandonarei toda a ilusão de futuro para ter futuro.
Longínquas terras desconhecidas, penetrarei em suas entranhas, silenciosamente.
Apenas escutarei o rumor do verso.
Apenas a singela dor da mentira.
A singela queda de todo objeto.

(de Miguel Oscar Menassa, “Las 2001 Noches – y 393 noches de repuesto”, noche 31, p. 35, Editorial Grupo Cero)

ERA UMA VEZ...

CAIU NA REDE É JACARÉ

(de Eliane Marques)

Ela bateu na menina com toda a força dos seus muros de mulher malamada cujo marido vai ter com os amigos da cachaça enquanto ela lava e passa a roupa dos patrões e chora na igreja a batina do padre e sua profissão de asceta. Bateu e colocou o pé na garganta da pequena de tranças até quase lhe matar de sufocação. Então pediu ajuda a um vizinho (para terminar de matar, será?). Esse ameaçou chamar a polícia (também para terminar de matar, será?) Tudo se passou por que a guria fora devolver a trouxa de roupas e, em vez de receber o pagamento e ir logo para casa entregar o dinheiro à sobrevivência da família, resolveu jogar no bicho a escravidão da genitora.
Todavia, para a surpresa dessa, depois das surras de outono, deu na cabeça o bicho que a guria havia jogado. Mas a lagoa já estava seca e o jacaré de dentes quebrados não distinguia nenhum lírio no campo.
A surra manteve-se ardida e olorosa à arruda nas tranças da guria que, desejando acertar na educação de seus filhos, internou-os, desde cedo, numa das casas de correção precursoras da FEBEM: não queria que os negrinhos se tornassem jogadores de bicho. Felizmente ocorreu tudo conforme seus votos: um dos filhos se tornou traficante e amante da branca de neve; outro morreu bem bêbado depois de ser muito acarinhado pelos zeladores das crianças internadas; dois estão nos céus: um na igreja do reino de deus e outro no manicômio e seus reis psiquiatras. Para o bem de todos, nenhum jamais jogou no bicho.

TRADUCEIRO


A meio caminhar de nossa vida
fui me encontrar em uma selva escura:
estava a reta minha via perdida.

Ah! que a tarefa de narrar é dura
essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura.

De tão amarga, pouco mais lhe é a morte,
mas, pra tratar do bem que enfim lá achei,
direi do mais que me guardava a sorte.

Como lá fui para dizer não sei;
tão tolhido de sono me encontrava,
que a verdadeira via abandonei.

(fragmento do Canto I, “A Divina Comédia – Inferno”, de Dante Alighieri, tradução de Ítalo Eugenio Mauro, Editora 34)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009


Morelliana.

Por que escrevo isso? Não tenho idéias claras, nem sequer tenho idéias. Há trapos, impulsos, bloqueios, e tudo procura uma forma, então entra em jogo o ritmo, e escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não pelo que chamam de pensamento e que faz a prosa literária ou outra. Há primeiro uma situação confusa, que mal se pode definir pela palavra; é dessa penumbra que eu parto, e, se aquilo que quero dizer (se aquilo que quer dizer-se) tiver força suficiente , o swing começa imediatamente, um oscilar rítmico que me traz para a superfície, que ilumina tudo, que conjuga esta matéria confusa e o que a padece numa terceira instância, clara e como que fatal: a frase, o parágrafo, a página, o capítulo, o livro. Esse oscilar, esse swing no qual se vai informando a matéria confusa, é a única certeza, para mim, da sua própria necessidade, pois, tão logo cessa, compreendo que já nada mais tenho para dizer. É também a única recompensa do meu trabalho: sentir que aquilo que escrevi é como dorso de um gato sob a carícia, com fagulhas e um arquear cadencioso. Assim, pela escritura, desço ao vulcão, aproximo-me das Mães, entro em contato com o Centro, seja o que for. Escrever é desenhar a minha mandala e, ao mesmo tempo, percorrê-la, inventar a purificação, purificando-se; tarefa de um pobre xamã branco com cuecas de náilon.

(O jogo da amarelinha, Julio Cortázar, Círculo do Livro S.A)

Hoje, 12 de fevereiro, Verso B continua a homenagear Julio, que, nesta mesma data do ano de 1984, ou seja, há 25 anos, tornara, definitivamente, Cortázar imortal.
Para tanto, nos valemos das palavras de Gabriel García Márquez (publicadas no jornal “El País, de Madrid, em 22 de fevereiro de 1984) que, desde a leitura do primeiro livro de contos do Autor, e desde a primeira página, deu-se conta de que aquele era um escritor como o que ele (Márquez) queria ser quando crescesse.

“Alguém me disse em Paris que ele escrevia no café Old Navy, do boulevard Saint Germain, e ali lhe esperei várias semanas até que o vi entrar como uma aparição. Era o homem mais alto que se podia imaginar, com uma cara de menino perverso dentro de um interminável casaco negro que mais parecia a batina de um viúvo, e tinha os olhos muito separados, como os de um bezerro, e tão oblíquos e diáfanos que poderiam ser os do diabo se não houvessem sido submetidos aos domínios do coração.”

enquanto isso na cabeça do mundo...

25 ANOS DA MORTE DE CORTÁZAR
Yo creo que desde muy pequeño mi desdicha y mi dicha al mismo tiempo fue el no aceptar las cosas como dadas. A mí no me bastaba con que me dijeran que eso era una mesa, o que la palabra "madre" era la palabra "madre" y ahí se acaba todo. Al contrario, en el objeto mesa y en la palabra madre empezaba para mi un itinerario misterioso que a veces llegaba a franquear y en el que a veces me estrellaba."

"En suma, desde pequeño, mi relación con las palabras, con la escritura, no se diferencia de mi relación con el mundo en general. Yo parezco haber nacido para no aceptar las cosas tal como me son dadas."
JULIO CORTÁZAR

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

TRADUCEIRO

(obra de "os gêmeos)

máquina de esquecer

"Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los durante vários meses das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivessaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tas. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcádio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.
Na entrada do caminho do pântano puseram um cartaz que dizia Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante."

(do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, p. 47 e 48, Editora Folha de São Paulo, Tradução de Eliane Zagury, 2003)

ERA UMA VEZ...

JASMIM
de Eliane Marques

A Jovina era magrinha e de cabelo black muito grande, parecia carregar uma lua cheia e crespa na cabeça. Lembro de sua figura esguia metida num macacão azul escorrendo pelo corredor da casa da minha avó no dia do velório de Bonaventura, meu avô. Nesse dia, enquanto os adultos rezavam pelo desaparecido, as crianças brincavam de passar o anel. “Passa, passará, pelo último ficará, a porteira está aberta para quem quiser passar ... Passa um, passa dois ...” Não, essa não é a brincadeira do anel ... “Passa três, emboca quatro”. Eu a esqueci quando dessa minha primeira morte. Sentada nas pedras da frente da casa como se estivesse num sofá da Idade Média eu tentava adivinhar quem seria o próximo a ter seu nome no livro preto posto numa espécie de púlpito à entrada de onde se realizavam as exéquias. Desejava que fosse o nome do meu pai.
A Jovina vivia com um homem-deixado-da-mulher, um homem branco. A casa deles ficava próxima à da mulher-deixada, que era branca também. Certa feita Jovina estava deitada, era domingo ou dia feriado no qual os orixás depositam suas armas sem o temor da segunda-feira. Um gato preto, saído de alguma história que espera ser contada, atravessou o corredor do quarto onde ela dormia, o bicho tinha a rapidez da linha preta a atravessar a cabeça da agulha. O “talzinho” se instalou no pátio dos jasmins ainda adormecidos. No dia imediato à visita felina Jovina não alimentou seus orixás. Não houve médico ou macumba que fizesse cessar a dor de Aquiles guerreando na sua cabeça. Resolveu agarrar-se à esperança de minha tia Negrinha e seus encantamentos de menina – má. Viajaram a Montevidéu, clandestinas, a Jovina, a Rosaura, sua mãe, e a Jandira, sua irmã. Foram numa combe, a Jandira, na parte traseira, cuidava da doente, e minha tia, na frente, pedia pressa ao motorista – queria ganhar da morte pelo menos essa partida.
Chegadas a Montevidéu, procuraram o terreiro de Negrinha. Um portador-de-más-notícias anunciou que a mãe de santo viajara a Buenos-Aires. Tambores soaram nesse instante e filas de negros desenterraram suas vestes sedentas de ritos olvidados. Hospital nenhum aceitou aquela paciente de oco de dança na cinza. Minha tia, presa ao teto do socorro pedia escuro. E entravam médicos que expunham os limites de sua ciência. E o teto ouvia a filha se esfregando no oco de um pesadelo que alguém inventara e lhe impusera como seu.
Por que os exilados da vida não portam documento, Jovina foi enterrada com o nome de sua irmã, Jandira Maria. A Maria vive hoje em Sant’Ana do Livramento, é doceira. A Jandira tem seu nome no "livro dos mortos" em algum morredeiro de pobres de Montevidéu.
O bicho. O bicho, dizem, era da mulher-deixada. Desconfio de uma promessa aos santos em troca de felicidade ou da querência de algum miado de gato que aportasse alívio à sua solidão.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

DIÁRIOS







BRECHT

março, 1921

22, terça-feira
Munique. Klette. Um homem sujo de cem marcos! Ele aceita presentes: porcentagem da firma contra a qual ele representa seu cliente, o tio de Otto. Como crítico ele recebe 100 marcos por dia para servir de figura decorativa. Como agente quer a metade, etc. Ta(rde), deito com Marianne no Grieslewildwest. A mulher maori na grama queimada da estepe, depois ela canta “Solidão do Campo” de Brahms, nunca ouvi cantar tão bem. Talvez ela case com Recht. Sem dúvida vai ficar com a criança. Eu digo a ela que deve. Às vezes eu tenho fome de frases que sejam atiradas ao vento dos loucos prazeres da carne verbal e da refinada alusão ao palco; eu, devastado pelo filme.
(do livro “Diários de Brecht - Diários de 1920 a 1922, Anotações autobiográficas de 1920 a 1954”, Organizado por Herta Ramthum, tradução de Reinaldo Guarany, Porto Alegre, L&PM, 1995, p. 73)

CONFÁBULAS

FEITIÇO

(de Lúcia Bins Ely)

Um corpo de letras pulula minhas veias.
Me ardem brasas o verso de agora.
Dos meus olhos, vertem www que rompem tua boca manchada de beijos.
Cai um grito.
Se abrem os porões da casa
que, encantada, move-se entre o amor e o corpo que se dobra a parir
palavras.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

PSICOANÁLISE EM RECORTES

(No lado escuro da lua, de Giorgio de Chirico)


A ciência é retificável, portanto não lhe podemos pedir que seja um catecismo.


por Mára Bellini

QUARTA-COM-CORTÁZAR


POR ESCRITO GALINHA UMA

Com o que acontece é nós exaltante. Rapidamente do possuídas mundo estamos hurra. Era um inofensivo aparentemente foguete lançado Canaveral americanos Cabo pelos de. Razões se desconhecidas por órbita da desviou e provavelmente alguma coisa ao roçar invisível a terra devolveu a. Crista nos caiu na paf, e mutação repente entramos de. Rapidamente a multiplicar aprendendo de tabuada estamos, dotadas muito literatura para a somos de história, química menos um pouco, desastre agora até esportes, não importa mas: de será galinhas cosmos o, merda que.


(de Julio Cortázar, do livro”A volta ao dia em 80 mundos”, Civilização Brasileira, 2008, p. 72)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

VERSO B


QUASE

(Mário de Sá Carneiro)

Um pouco mais de sol – eu era brasa.
Um pouco mais de azul – eu era além.
Pra atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho desertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
-Ai a dor de ser – quase, dor sem fim...-
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

............................................................

............................................................


Um pouco mais de sol – e fora brasa.
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Paris, 13 de maio de 1913

FRASE FEITA



A psicoanálise nos permitiu portar palavras, mais do que carne...

(Marcela Villavella, da revista "Freud – Saberes y Opiniones, a 150 años de su nacimiento", do artigo “El sueño de Freud”, pp 49 e 50,)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

NO DIVÃ, COM NELSON



Leitores, hoje prossegue “A vida como ela é...”, segunda parte, na qual, depois da apresentação de outra face do Raimundinho, por Nelson Rodrigues, a psicoanalista Barbara Corsetti desvenda mais desse sujeito de intensas olheiras, bracinhos e canelas de Olívia Palito.

Vamos acompanhar, a saber mais da vida dos outros em nós!!!


As editoras

A IDADE DE CRISTO

PARTE 2
O outro

Trabalhava numa firma importadora. Um dia, chega e encontra, na mesa do lado, um novo companheiro. Era o Asdrúbal. Ia pela primeira vez ao trabalho e, justiça se lhe faça: - a aparência pessoal do Asdrúbal era humilhante para os demais. Maciçamente belo como um bárbaro e não se podia criar um conjunto mais deprimente de dons físicos: - um olhar de azul violento e diáfano, um perfil cinematográfico e, numa palavra, uma beleza viril, bem acabada, irretocável. O impacto, no escritório, foi violento. Houve, de um lado, o deslumbramento unânime das telefonistas; e, do outro, a secreta irritação dos homens. Quanto ao Raimundo, sua reação foi única. O esplendor do outro, aquele fulgor de Apolo, doeu-lhe na carne e na alma. Mais do que nunca sentiu-se um fraco e um miserando. E coisa curiosa! Desde o primeiro momento, odiou o novo colega com o furor impotente do raquítico e do feio. Na primeira oportunidade, cochicha para um outro feio:

_ Pavão de galinheiro!

Chamar o apolíneo Asdrúbal de “pavão de galinheiro” era uma clara injustiça. Infelizmente, há, em toda a injustiça um fundo de verdade. A figura do Asdrúbal, com o excesso de beleza e elegância, como que justificava a blague. Enquanto as mulheres deliravam, os homens rosnavam pelos cantos: “pavão de galinheiro!” Era um amargo, um neurastênico consolo. Três ou quatro dias depois, o Raimundo aparece no escritório, transfigurado:

_ Bolei uma piada genial! Uma big idéia!

Foi cercado. E, então, tossindo aqui e ali, com suas crises de falso tuberculoso, Raimundo baixa a voz:

_ Vou desmoralizar esse cara! Vocês vão ver! E olha: pareço burro, mas sou cerebral pra chuchu!

Parou para tossir e avisa:

_ Prestem atenção, suas bestas! Vejam a classe!

Pigarreia, atravessa o escritório e inclina-se sobre o novo companheiro:

_ Qual é a tua idade?

Asdrúbal ergue o olhar de um azul macio e inesquecível:

_ Trinta e quatro.

Raimundo levanta a voz. Fala para todo mundo:

_ Trinta e quatro! Que é que ele fez até agora? Que é que ele é no rol das coisas?

Interpelava os companheiros. Surpreso e inquieto. Asdrúbal não estava entendendo. (O Raimundo andava espalhando que o Apolo era “bonito e burro”) O próprio Raimundo responde a si mesmo: “Nada! Ele não fez nada!” vira-se para o belo Asdrúbal e prossegue, com uma alegre crueldade:

_ Escuta! Com 33 anos Cristo já tinha sido crucificado! E, você que tem 34 anos, e continua belo e formoso? Você não fez nada , você não faz nada!

Riu. Os outros riram, também. E o próprio Asdrúbal os imitou.
Subitamente, sério, Raimundo põe-lhe a mão no ombro:

_ Cristo fez tanto e você tão pouco! Não te envergonhas de não fazer nada, nada? Escuta! Com um ano menos do que tu, Cristo foi pendurado na cruz!

Asdrúbal olha para um e para outro. Perguntou:

_ Que piada é essa?

Sem lhe dar atenção, Raimundo dirigia-se aos demais:

_ O Asdrúbal não vive! O Asdrúbal não faz nada!

(de Nelson Rodrigues, A vida como ela é... Elas gostam de apanhar)

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PALAVRA DA PSICOANALISTA


Esse é o nosso Raimundo em ação.

Essa série de questões que se abrem para ele sobre quem é o novo colega de escritório gera o quê?
O que acontece com Raimundo?
O que vê Raimundo na figura de Asdrúbal?
Quem é o que agride? Pelo que Raimundo se sente agredido?

Vamos por partes.

O nosso feio, magro e lívido estava no médico procurando algo seu, algo que não consegue encontrar nas radiografias.

Quando vê Asdrúbal sente que aquela beleza de Apolo diz “algo ele tem”, algo ele pode, algo Raimundo vê em Asdrúbal, que o faz construir uma série de desejos lá, nessa imagem. E o que quer Raimundo então? Quer destruir a imagem que vê.

Tal imagem perfeita o incomoda, o desmonta, e, ao mesmo tempo, o intriga, o movimenta. Raimundo sofre da inveja.

Voltemos ao momento lindo de amor da criança com a mãe. Nessa época qualquer movimento da mãe em busca de algo que não seja a criança, torna-se uma tortura para o pequeno. Se a mãe estiver assistindo TV, empolgadíssima com o drama de uma novela, a criança vai perceber e tentar fazer algo para que sua mãe a olhe. Então grita, esperneia, chama, pede comida, pede atenção da mãe que se perdeu em outro desejo.

Quando a criança vê que a mãe e o pai estão de carinhos ou simplesmente conversando, o pai é o que está tirando a mãe dela, então é no pai que a criança vai destinar seu desejo de destruição. Vai querer tirar o pai da mãe, ou melhor, tirar a mãe do pai. Não consegue suportar que mãe possa estar querendo outra coisa senão ela. Não consegue suportar que a mãe deseja. Como pode? Estávamos tão bem assim juntinhos. Como pode querer outra coisa?
E se a mãe mantém sua atividade, mantém o olhar na novela, mantém a conversa com o pai, mantém essa distância, a distância necessária para que a criança possa com outras coisas também, então a criança pode ir construindo seu espaço, e vai caindo de um lugar onde estaria apenas ela, a mãe.

O fato é que na inveja, no não suportar que o outro possa com algo, o sujeito não percebe que ele está querendo algo com aquele, e por não suportar isso, que ele próprio deseja, prefere exterminar o outro desejante de sua frente.

A beleza de Asdrúbal tornou-se para Raimundo uma obsessão. Ver a imagem de Asdrúbal que supõe tão perfeita, fez com que Raimundo não percebesse que naquele sujeito também poderiam existir dúvidas, medos, interrogações. Não, para Raimundo a beleza de Asdrúbal era significado de completo, perfeito e que provavelmente Asdrúbal sim soubesse da resposta que Raimundo tanto buscava no médico

Raimundo construiu uma frase – o que fez Asdrúbal? O que faz Asdrúbal?

Nossa pergunta poderia ser – o que fez Asdrúbal com Raimundo – o que faz a presença de Asdrúbal com Raimundo? O que gera em Raimundo?

Outro ponto da questão pode ser aberto com o que diz a psicoanalista Marcela Villavella: - “os mitos são uma forma particular de ficção que se constitui ao redor do falante, nos vestígios distorcidos, deformados das fantasias da humanidade. Mantém uma singular relação com a verdade, como componente inseparável do mito. A verdade tem estrutura de ficção e a ficção é uma construção puramente humana. Dostoievski expressa que a verdade é sempre inverossímil; para dar verossimilhança é necessário misturar um pouco de mentira.”

Nesse âmbito de mentiras o que a psicoanálise apresenta é a construção de uma vida, desde aí entra a mentira, pois qual seria a verdade? Onde estaria a grande verdade se não o que foi dito a cada um de nós enquanto crescíamos. Quando nascemos, já temos traçado um perfil, sonhos e projetos, todos trazidos dos desejos dos que nos permitem viver. Os pais desejam aos filhos o que muito desejaram para si e vão depositar sobre a criança uma série de vontades, muitas vezes adormecidas em si. Por isso a mentira para a psicoanálise é apenas uma nova versão de uma história que está para ser contada. A vida de cada um pode ser contada conforme cada um deseja que se constitua.


Barbara Corsetti

domingo, 1 de fevereiro de 2009

ENQUANTO ISSO, NA CABEÇA DAS EDITORAS...

(obra de "os gêmeos")


Falhamos.
Neste domingo não postaremos novela de Marcela Villavella. A escritora está organizando os referidos textos para apresentá-los a um certame, em seu país de origem.
A sugestão é de que nos horrorizemos e, ao mesmo tempo, nos deliciemos, com uma passagem de “Esperando Godot”, de Samuel Becktt, traduzida por Fábio de Souza Andrade, numa edição primorosa da Cosac Naify, de 2005.

Olhos na tela e boa espera!


ESPERANDO GODOT

Primeiro ato

Estrada no campo. Árvore. Entardecer.
Sentado sobre uma pedra, Estragon tenta tirar a bota. Faz força com as duas mãos, gemendo. Pára, exausto; descansa, ofegante; recomeça. Mais uma vez.
Entra Vladimir
.

ESTRAGON
(desistindo de novo) Nada a fazer.

VLADIMIR
(aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados) Estou quase acreditando. (Fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia: Vladimir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta. (Encolhe-se, pensando na luta. Vira-se para Estragon) Veja só! Você, aqui, de volta.

ESTRAGON
Estou?

VLADIMIR
Que bom que voltou. Pensei que tivesse partido para sempre.

ESTRAGON
Eu também.

VLADIMIR
Temos que comemorar, mas como? (Pensa) Levante que lhe dou um abraço
.(Oferece a mão a Estragon)

ESTRAGON
(irritado) Daqui a pouco, daqui a pouco.


Silêncio.

VLADIMIR
(magoado, com frieza) Pode-se saber onde o senhor passou a noite?
ESTRAGON
Numa vala.

VLADIMIR
(espantado) Numa vala! Onde?

ESTRAGON
(sem indicar) Logo ali.

VLADIMIR
E eles não bateram em você?

ESTRAGON
Bateram, mas não demais.

VLADIMIR
Os mesmos de sempre?

ESTRAGON
Os de sempre? Não sei.

Silêncio.

VLADIMIR
Quando paro para pensar... estes anos todos... não fosse eu... o que teria sido de você...? (com firmeza) Não seria mais do que um montinho de ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida.

ESTRAGON
(ofendido) E daí?

VLADIMIR
(melancólico) É demais para um homem só. (Pausa. Com vivacidade) Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900.

ESTRAGON
Chega. Ajude aqui a tirar esta porcaria.

VLADIMIR
De mãos dadas, pular do alto da torre Eiffel, os primeiros da fila. Éramos gente distinta naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir. (Estragon luta com a bota) O que você está fazendo?

ESTRAGON
Tirando minha bota. Nunca aconteceu com você?

POEMA DE BOLSA

UM CARA ESTRANHO

(de Renato Battistel)



Um cara estranho
passou ao vento

Virou o ninho de minha alma

Disse meu nome

agora
tenho que amar


(Revista àguaviva n° 8, 2005, Ed. Grupo Cero, p. 23)