quarta-feira, 1 de abril de 2009

+ poesia

NOIVADO

a Picasso

(de Guillaume Apollinaire)

A primavera deixa a vaguear os noivos de juramento quebrado
E deixa folhear longamente as penas azuis
Que sacodem o cipreste onde se aninha o pássaro azulado

Uma Madona na alvorada pegou as rosas silvestres
Ela virá amanhã colher os cravos
Para por nos ninhos das pombas como mestres
Ao pombo que esta noite parece o Paracleto

No pequeno bosque de limoeiros se apaixonaram
Do amor que amamos as últimas chegadas
As aldeias longínquas são como as suas pálpebras
E entre os limões seus corações deixaram pegadas

Meus amigos finalmente confessaram o seu desprezo
Eu bebia copos cheios de estrelas
Um anjo exterminou enquanto eu dormia
Os cordeiros os pastores dos tristes estábulos
Falsos centuriões levavam o vinagre
E indigentes mal feridos pelo purgante dançavam
Estrelas do acordar não conheço nenhuma
Os postes de gás mijavam sua chama ao luar
Agentes funerários com seus chopes dobravam os sinos
Na luz das velas caíam bem ou mal
Colarinhos sobre ondas de saias mal escovadas
Festejavam sua libertação gestantes mascaradas
A cidade esta noite parecia um arquipélago
Mulheres pediam o amor e o culto aos santos
E escuro, escuro rio eu me recordo
As sombras que passavam nunca eram bonitas
Não tenho mais nem mesmo piedade de mim
Nem posso expressar meu tormento de silêncio
Todas as palavras que eu ia dizer tornaram-se estrelas
Um Ícaro tenta elevar-se até cada um de meu olhos
E carregador de sóis eu queimo no centro de duas nebulosas
Que terei feito aos bichos teologais da inteligência
Outrora os mortos voltavam adorar-me
E eu esperava o fim do mundo
Mas o meu chega soprando como um furacão

Tive a coragem de olhar para trás
Os cadáveres de meus dias
Marcam a minha estrada e os choro
Alguns apodrecem em igrejas italianas
Ou então em pequenos bosques de limoeiros
Que florescem e frutificam
Ao mesmo tempo e em toda estação

Outros dias choraram antes de morrer nas tavernas
Onde ardentes flores rodavam
Aos olhos de uma mulata que inventava a poesia
E as rosas da eletricidade ainda se abrem
No jardim da minha memória

Perdoem-me a minha ignorância
Perdoem-me por não conhecer mais o antigo jogo dos versos
Não sei mais nada e amo unicamente
As flores aos meus olhos voltam a ser chamas
Medito divinamente
E sorrio dos seres que eu não criei
Mas se o tempo viesse em que a sombra enfim sólida
Se multiplicasse realizando a diversidade formal do meu amor
Eu admiraria a minha obra

Observo o descanso do domingo
E louvo a preguiça
Como como reduzir
A infinitamente pequena ciência
Que me impõem os meus sentidos
Um é igual às montanhas do céu
As cidades ao meu amor
Ele se parece com as estações
Ele vive decapitado a sua cabeça é o sol
E a lua seu pescoço cortado
Eu queria sentir um ardor infinito
Monstro de meu ouvido você ruge você chora
O trovão te serve de cabeleira
E tuas garras repetem o canto dos pássaros
O toque monstruoso me penetrou me envenena
Meus olhos nadam longe de mim
E os astros intactos são meus mestres sem prova
A besta das fumaças tem a cabeça florida
E o monstro o mais belo
Tendo o sabor do louro se lamenta

Por fim as mentiras não me metem mais medo
É a lua que cozinha como um ovo na frigideira
Este colar de gotas de água vai enfeitar a afogada
Eis meu ramo de flores da Paixão
Que oferecem com ternura duas coroas de espinho
As ruas estão molhadas da antiga chuva
Anjos diligentes trabalham por mim em casa
A lua e a tristeza desaparecerão durante
Todo o santo dia
Todo o santo dia eu andei cantando
Uma dama debruçada na sua janela me olhou longamente
Afastar-me cantando

Na esquina de uma rua eu vi marujos
Que dançavam o pescoço nu ao som do acordeão
Dei tudo ao sol
Tudo menos a minha sombra

As dragas os fardos as sereias semimortas
No horizonte nublado se perdiam os navios de três mastros
Os ventos morreram coroados de anêmonas
Ó Virgem signo puro do terceiro mês

Templários flamejantes queimo entre vós
Vamos profetizar juntos ò grande mestre eu sou
O desejável fogo que se sacrifica por vós
E os foguetes giram ó bela ó bela noite

Laços soltos por uma livre chama Ardor
Que meu sopro apagará. Ó Mortos em quarentena
Vejo da minha morte a glória e a desgraça
Como se mirasse o pássaro do espantalho

Incerteza pássaro fingido pintado quando caia
O sol e o amor dançavam na aldeia
E teus filhos galantes bem ou mal vestidos
Construíram esta fogueira o ninho de minha coragem

(do livro Álcoois e Outros Poemas. Martin Claret. São Paulo, 2005, tradução de Daniel Fresnot)



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