quinta-feira, 30 de julho de 2009

+ poesia

Evolução

Mario Quintana

Todas as noites o sono nos atira da beira de um cais
E ficamos repousando no fundo do mar.
O mar onde tudo recomeça...
Onde tudo se refaz...
Até que, um dia, nós criaremos asas.
E andaremos no ar como se anda em terra.

(do livro Esconderijos do Tempo, de Mario Quintana, 30 de junho de 1906 - 5 de maio de 1994)

confábulas


A TERCEIRA COISA

O sr. K. jamais estabelecia ele mesmo relação com uma pessoa, mas sempre invocava a terceira coisa. Com esta o sr. K. e seu amigo estabeleciam a relação. “Como então”, dizia o sr. K., “pode acabar a relação? A terceira coisa pode acabar. Disso vive a relação."

(Histórias do sr. Keuner, Bertolt Brecht, editora 34)

diário de um psicoanalista

21 de agosto de 1977

Ter mais pactos que braços ou que órgãos genitais também é uma maneira de viver.

(El Ofício de Morir, Miguel Oscar Menassa, Editorial Biblioteca Nueva)

quarta-feira, 29 de julho de 2009

+ poesia

HORÁCIO

O bêbado cabal
Quando nós, de meninos,
vivemos a doença
de criar passarinhos,

e as férias acabadas
o horrível outra-vez
do colégio nos pôs
na rotina de rês,

deixamos com Horácio
um dinheiro menino
que pudesse manter
em vida os passarinhos.

Poucos dias depois
as gaiolas sem língua
eram tumbas aéreas
de morte nordestina.

Horácio não comprara
alpiste; e tocar na água
gratuita, para os cochos,
certo lhe repugnava.

Gastou o que do alpiste
com o alpiste-cachaça,
alma do passarinho
que em suas veias cantava.

(João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra e depois, Editora Nova Fronteira)

psicoanálise em recortes

(Modigliani)

Começo a me psicoanalisar, não para curar nenhuma ferida passada, senão para viver melhor os anos futuros.

(Miguel Oscar Menassa)

quarta-com-cortázar






HISTÓRIA VERÍDICA

Um senhor deixa cair no chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.
Então, esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amigável, de maneira que se dirige a uma ótica e compra um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução. Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior precaução verifica que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.

(Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e Famas, Círculo do Livro, São Paulo)

terça-feira, 28 de julho de 2009

frase feita

(Eugène Delacroix)



Depois que se matem milhões para conseguir pão e liberdade, se iniciará o processo revolucionário dos terráqueos.

(Miguel Menassa)


verso b

In extremis

Olavo Bilac


Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! de um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! Postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...

E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! E
[este medo!
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
A arredar-me de ti, cada vez mais a morte...

Eu, com o frio a crescer no coração, - tão cheio
De ti, até no horror do derradeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!

E eu morrendo! e eu morrendo
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,
A delícia da vida! A delícia da vida!

domingo, 26 de julho de 2009

+ psicoanálise

(Eugène Delacroix)


Um tirano se aninha no coração do homem atual e um tirano não gera desejos, se não obrigações, exércitos.

(Miguel Oscar Menassa)


poema de bolsa

Acontecimento Heráclito


Pedi o Livro para registrar as façanhas.

A primeira: Farás o amor.
E apenas brotou o ódio.
As órbitas espaciais se encheram de olhos mortos.

A segunda: Não mentirás.
E brotou a estafa.
O homem contou seus ossos e seus nervos
e os colocou na balança para vender.

A terceira: Não cairás em idolatria.
E no dia seguinte levantaste um código de signos
no qual cada cifra era uma boca sem entranhas.
O homem se converteu num número que andava.

A quarta: Não roubarás.
E estalou a ausência.
O pão que te dei para viver se deslizava no coração
das hienas.

A quinta: Dará a mão ao necessitado.
E teus dedos se encheram de garfos.

A sexta: Não trairás o amigo.
E no dia seguinte teus desejos avançavam no ventre da mulher.
O planeta era uma matriz onde as bactérias
competiam com o homem.

A sétima: Não construirás ataúdes.
E se acenderam os semáforos negros
sobre o vazio.
A luz era um cone que recolhia as palavras.

A oitava: Não dividirás.
E em seguida instauraste as cores.
As raças extraíram suas imagens de um espelho
multiplicado.

A nona: Não violentarás teu corpo.
E no dia seguinte o cansaço pariu as invenções,
e a preguiça, a inteligência artificial.
As larvas foram o filtro que codificava o sexo,
que acionava o prazer em pequenos pontos
cujas antenas alçavam o desejo
de velhos computadores que gemiam.

A décima: Não matarás.
E nasceram a ambição, o desprezo, a alienação
e a destruição.
Os átomos copularam em vulvas de ferro que giravam
até mundos pulverizados.
Perderam seus núcleos e caíram na cadeia
enlaçando imagens
esqueletos que pregavam de seus números
fótons de outras partículas que fundiam o futuro
com o passado sem memória.

(Juan-Jacobo Bajarlia, Poema de La Creación, Editorial Grupo Cero)

sessão desvelada

ADRIANO

II Parte (I parte publicada em 19 de julho)

Campainha
- Cheguei no horário hoje. Tinha muita vontade de vir... fiquei pensando em algo do que me interpretaste na sessão passada. O de me sentir órfão, o das perdas... o …

- Pode te deitar no divã, esta sessão é outra.

- Estou um pouco ansioso. Vou respirar fundo um pouco para ver se relaxo e digo tudo o que pensei entre ontem e hoje.

- Que ambição desmedida. Pode falar o que vá podendo falar, porém tudo o que pensou não vai poder falar.

- É verdade, me senti insignificante quando Luísa me disse que não me amava mais. Me foi insuportável que ela pronunciasse essa frase assim, com essa naturalidade, como dizendo “Chove em Moscou”

- Chove em Moscou... soa natural?

- Nunca estive em Moscou... não sei por que o disse.

- E com o que o associa?

- Não vinha para falar disso, queria contar o que pensei ontem, porém agora já não posso falar de outra coisa que disso que me fez dizer: Chove em Moscou.

- Sim, o escuto.

- Chamam Luísa de a “russa”, mas não por ser russa, senão por ser judia.

- A russa te disse que não o amava mais, como se lhe fosse natural ver chover em Moscou e contar.

- Agora me lembro que faz alguns meses, quis dizer a ela que estava incômodo com sua presença permanente em minha casa, porém não o disse. Um dia que não a aguentava mais por que não me deixava ver uma partida de futebol e lhe disse: por que não vai a esquina ver se está chovendo.

- Quando lhe queria dizer era que o deixasse um pouco sozinho. E lhe mandou ver se chovia. - Sim, me custa dizer o que penso, sempre dou voltas estranhas e termino mostrando meu mal-estar, mas sem me animar a dizer.

- E ela te disse: Não te amo mais... da mesma maneira que você lhe tivesse dito: Chove em Moscou. Que tristeza, não há mais sol para nós.

- Tenho vontade de chorar e lhe dizer que ainda que seja minha analista às vezes a amo e às vezes não a amo.
- Bem, Adriano, algo posso dizer. Às vezes também chove entre você e eu, até a próxima.

Marcela Villavella

sábado, 25 de julho de 2009

o tempo passa

noite 2
das 2001 noites
Recordo como se fosse hoje, quando aquele velho índio acreditou haver descoberto na minha mirada uma ânsia de cura, me disse com a boca apenas entreaberta, num idioma até então desconhecido:

Toma esse cogumelo e logo, se não deseja demais, terá o poder de curar.

(Las 2001 noches y 393 noches de repuesto, 1976-1997, Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero)

ainda que não compreendamos o seu passar

2ª noite
das espantosas histórias das mil e uma noites

Disse Sahrazad:

Conta-se ó rei venturoso e de correto parecer, que, quando o gênio, ergueu a mão com a espada, o mercador lhe disse: “Ó criatura sobre-humana, é mesmo imperioso me matar? " “E por que você não me concede um prazo para que eu possa despedir-me de minha família, de meus filhos e de minha esposa, dividir minha herança entre eles e fazer as disposições finais? Em seguida, retornarei para que você me mate”. Disse o ifrit: “ Temo que, caso eu o solte e lhe conceda um prazo, você vá fazer o que precisa e não regresse mais”. O mercador disse: “Eu lhe juro por minha honra; eu prometo e convoco o testemunho do Deus dos céus e da terra que eu voltarei para você. “O gênio perguntou: E de quanto é o prazo?”. Respondeu o mercador: “Um ano, para que eu me sacie de ver meus filhos, possa despedir-me de minha mulher e resgatar alguns títulos; retornarei no início do ano”. O gênio disse: “Deus é testemunha do que você está jurando: se eu soltá-lo voltará no início do ano”. O mercador respondeu: “Invoco a Deus por testemunha do que estou jurando”. E quando ele jurou, o gênio soltou-o. Triste, o mercador subiu na montaria e tomou o caminho de casa. Avançou até chegar à sua cidade; entrou em casa, encontrando os filhos e a esposa. Ao vê-los, foi tomado pelo choro com lágrimas abundantes, demonstrando aflição e tristeza. Todos estranharam aquele seu estado, e sua esposa lhe perguntou: “O que você tem, homem? Que choro é esse? Nós hoje estamos felizes, num dia de júbilo por sua volta. Que luto é esse?. Ele respondeu: “E como não estar de luto se só me resta um ano de vida?, e a colocou a par do que se passara entre ele e o gênio durante a viagem, informando a todos que ele jurara ao gênio que regressaria no início do ano para que este o matasse.
Disse o autor: ao lhe ouvirem as palavras, todos choraram.
A esposa começou a bater no próprio rosto e a arrancar os cabelos; as meninas, a gritar; e os pequenos, a chorar. O luto se instalou, e durante o dia inteiro as crianças choraram em redor do pai, que passou a dar e a receber adeus. No dia seguinte, ele iniciou a partilha da herança e se pôs a ditar recomendações, a quitar seus compromissos com os outros, e a fazer concessões, doações e distribuição de esmolas. Convocou recitadores para que recitassem versículos religiosos pelo seu passamento, chamou testemunhas idôneas, libertou servas e escravos, pagou os direitos dos seus filhos mais velhos, fez recomendações quanto aos seus filhos mais moços e quitou os direitos de sua esposa. E permaneceu junto aos seus até que não faltassem para o ano-novo senão os dias do caminho a ser percorrido, quando então se levantou, fez abluções, rezou, recolheu sua mortalha e despediu-se da família; os filhos se penduraram em seu pescoço, as meninas choraram ao seu redor e sua esposa gritou. O choro deles fez-lhe o coração fraquejar, e seus olhos verteram lágrimas copiosas. Pôs-se a beijar freneticamente os filhos, a abraçá-los e a despedir-se deles; disse: “Meus filhos, esta é a decisão de Deus; tais são seus desígnios e decretos . E o homem, afinal, não foi criado senão para a morte.” E, dando um último adeus, deixou-os, subiu em sua montaria e avançou por dias e noites seguidos até chegar ao oásis em que encontrara o gênio, exatamente no dia de ano novo. Sentou-se no mesmo lugar onde comera as tâmaras e começou a esperar pelo gênio, com os olhos marejados e o coração triste. Em meio a essa espera eis que passou por ele um velho xeique que puxava uma gazela pela corrente. Aproximou-se e saudou o mercador, que lhe retribuiu a saudação. O xeique perguntou: “Por que motivo você está aqui, meu irmão, neste lugar que é moradia de gênios rebeldes e de filhos de demônios? Eles tanto assombraram esse lugar que quem aqui adentra nunca prospera”. Então o mercador contou tudo o que lhe sucedera com o gênio, do início ao fim, e o velho xeique, espantado com a fidelidade do mercador aos seus compromissos, disse;” Você de fato leva muito a sério e cumpre suas juras”. E, sentando-se ao seu lado, ajuntou: “Por Deus que não me moverei daqui até ver o que lhe ocorrerá com o gênio”. Assim, sentado ao seu lado, pôs-se a conversar com ele. Enquanto estavam nessa conversa eis que...

(Livro das Mil e Uma Noites, Volume I – ramo sírio, Editora Globo)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

+ psicoanálise

(Rugendas)

Melhor viajar sem rumo. Há céu em todas as direções.

(Miguel Menassa
)

era uma vez...

O OVO DO PROFETA

José fizera todo o tipo de serviços. Vendera pastéis, pães, doces, os poucos eletrodomésticos da casa, limpara salões de baile e ricas residências, pintara de vermelho, a gosto do cliente, rosas que, de nascimento, eram brancas... Dormira com a mulher do próximo e não amara a deus. Mas o seu trabalho preferido fora o de tamboreiro nas festas de religião. Gostava de tocar para os orixás. Tivera um apelido que herdara do pai, o seu João, primeiro homem ovo que aquela fronteira de tantas guerras havia conhecido. Seu João, depois de abandonar a Brigada Militar quando alcançado o cargo de “1° clarim da alvorada”, resolvera enveredar para outros negócios. Decidira ser comerciante de ovos. Certa feita, cansado da labuta, fora ao Clube Farroupilha ouvir um pouco de música. Sempre preocupado com as vendas, abrigara alguns ovos nos bolsos do casaco, com outros, pagara o ingresso para entrar no local, com outros preparara um jantar para os amigos e, das sobras, ainda fizera vistas grossas aos pequenos ladrões. Bem, o filho do Ovo, por essas coisas que ninguém sabe, ficou também conhecido como Ovo.
No leito de morte o único desejo do Ovo (filho) fora o de tomar um suco de maracujá que sua esposa, Madalena, demorara três dias para fazer. Por esses três dias também se alongara a vida do sedento.
Na última data da contagem, enquanto ele agonizava num quarto que ficava bem de frente às escadarias do terceiro andar do Hospital Santa Casa, caiu de joelhos, e com as mãos levantadas em direção aos céus, um homem magro e amarelo que, com voz de eco, gritava:
- Eu não acredito que meu irmão está nesse leito de morte. Eu não acredito!!! Te levanta daí, desce desse leito de morte meu irmão!
Maria reconheceu naquele discurso a voz de seu filho-Outro, Anastácio, que logo após ter tomado conhecimento da gravidade da doença do Ovo, correra para fazer algo, pois nenhum médico o fizera.
- Te levanta agora desse leito de trevas meu irmão. Tu podes, ainda não é chegada tua hora!
A mãe de José e também do Outro, irritada, exigia que o recente profeta desse fim àquele escândalo.
- Enfermeiro, tira esse traste daí!!
Mas esse era um milagre que não podia ser atendido por que Anastácio, agora, rezava em altos brados, arrastando-se de joelhos pelo corredor.
_Vamos meu irmão, reza comigo! Pai nosso que caístes do céu, permanecei no buraco onde estás que nós da terra tomaremos conta do céu...
Os parentes graves que acompanhavam os enfermos não entendiam nada do que ocorria – alguns quase mortos levantavam dos leitos e lamentavam nos ouvidos do profeta a dor por não terem acertado os números da loteria. Outros, menos graves, também não entendiam nada, mas abandonavam os pacientes para, num canto do corredor, se matarem de rir.
O Ovo, indiferente à presença de qualquer entidade salvadora, tomou o último gole de suco de maracujá e morreu enquanto o Outro continuou a profetizar até a retirada do seu corpo do quarto de hospital. Não, não a retirada do Ovo morto, mas do corpo do profeta que ninguém suportava mais.

Eliane Marques


traduceiro


poema da criação



Eras uma partícula que já não se arrastava
e ganhava altura
uma garra que caía em aluvião e recolhia o universo
na caixa de um sonho onde dançavam os espectros
de outras estrelas comprimidas em órbitas mofadas,
um tentáculo que enredava os mundos habitados
para se dizer o vencedor
uma gota de sangue para afogar a esperança
um navio que acumulava o espaço curvado
repleto de parábolas que jamais se tocavam
um fio que se enredava no riso
e desenhava uma palavra para telegrafar à morte.


(Juan-Jacobo Bajarlia, Poema de la Creacion, fragmento, p. 30, Editorial Grupo Cero, Buenos Aires)

quinta-feira, 23 de julho de 2009

+ poesia

EM LOUVOR DO SILÊNCIO

Nesse coxim acariciante de veludo,
- o olhar extinto, o corpo inerte, o lábio mudo –
longe da luz, longe de mim, longe de tudo,
deito minh’alma que repousa em seu regaço...

E aspiro o aroma do silêncio, longamente,
- papoula rubra que adormenta o meu cansaço –
e sinto o afago do seu beijo muito quente
e a morbideza virginal do seu abraço...

Extrema-unção espiritual de quem padece...
A realidade que se esvai, desaparece,
como num sonho delicioso de morfina...

E a vida ausente, e o coração que fica mudo,
enquanto a alma fatigada se reclina
nesse coxim acariciante de veludo...

(Theodomiro Tostes, Taquari 1903 - Porto Alegre 1986)

confábulas

O sr. Keuner e a morte

O sr. Keuner evitava enterros.

(Bertold Brecht, Histórias do sr. Keuner, Editora 34, São Paulo, 2006)

diário de um psicoanalista

27 de maio de 1977

Todo o mundo, quando o diz o neurótico, são, no máximo, três ou quatro pessoas.

(de Miguel Oscar Menassa, do livro “El Oficio de Morir”, Editorial Biblioteca Nueva)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

(Modigliani)

+ poesia

SONETO DO FACHO IMÓVEL

Queimei as mãos no sol de um casario
que nem pudera revelar mais puro.
Alto, saudoso, inatingido muro,
onde com o céu rolei, num calafrio.

Brasa de estrela, crepitar macio
de facho imóvel no silêncio escuro:
sonho remoto vindo de um futuro
que muito mal nas mãos desfaço e crio.

Queimei-as na insofrida claridade
que desnudava as únicas janelas
abertas sobre o beco friorento.

Uma aflição de ausente, uma saudade
de azul perdido e flores amarelas,
restos de morte, patamar cinzento...

(Alphonsus de Guimarães Filho, do livro Antologia de Poetas Brasileiros, Volume 2,organização de Manuel Bandeira e Walmir Ayala, Editora Nova Fronteira)

psicoanálise em recortes

MELHOR FALAR II

Há algo indecifrável. O gozo no corpo do outro é indecifrável. Em seu ancorar no desejo inconsciente, que seja indecifrável não implica que seja irreconhecível, já que existe essa potência desejante, esse discurso do Outro suspenso na constituição e na sexuação de cada sujeito.
A transferência é a posta em ato da realidade do Inconsciente enquanto é sexualidade, ou seja, a sexualidade está presente e em ação na transferência, quer dizer que para a escuta analítica, não há deciframento.
Há pontuação, silabação significante, interpretação. E não há sentido oculto prévio que deverá “emergir” do decifrado.
Há produção metafórica e metonímica.
Um poema não se pode reduzir a um discurso da racionalidade.
Na dimensão inconsciente o saber tem eficácia e pontuação, na situação analítica não há busca exitosa. O real irrompe, daí sua impossibilidade, não se pode buscar, não se pode encontrar. Pode se produzir na irrupção.
Na demanda de amor, na demanda do Outro o desejo produz sua busca impossível.

(fragmento do texto Mejor Hablar, do livro Mejor Hablar, de Maria Chévez, Editorial Grupo Cero, Madrid)

quarta-com-cortázar





HISTÓRIA

Um cronópio pequenininho procurava a chave da porta da rua na mesa-de-cabeceira, a mesa-de-cabeceira no quarto de dormir, o quarto de dormir na casa, a casa na rua. Por aqui parava o cronópio, pois para sair à rua precisava da chave da porta.

(Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas)

terça-feira, 21 de julho de 2009

+ psicoanálise


Os aportes da psicoanálise nos dizem que ninguém elege livremente seus "temas".

(Actas, Segundo Congresso Internacional de Poesia y Psicoanalisis, Editorial Grupo Cero, p. 251)

verso b

1

Por acaso um vagalume
cansado de voar, de iluminar o nada
pousará sobre os meus ombros quietos
e me fará feliz?

Ou, talvez, sou o homem
que se inunda de beijos
e não consegue nunca
deixar a solidão?
(do livro El hombre y yo, Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero)

frase feita



O que faz a estrada andar? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.

(fala do personagem Tuahir, do livro Terra Sonâmbula, Mia Couto, Companhia das Letras)

domingo, 19 de julho de 2009

+ psicoanálise

MELHOR FALAR

Disso que não se pode dizer, melhor falar.
O que o analisante diz que lhe acontece de maneira nenhuma se pode confundir na escuta analítica com o que lhe acontece. O que lê a escuta analítica é o que não está dito e deve lê-lo por meio da regra que impõe um dizer.
Dizer que dará a condição consciente, pois se não há a dimensão consciente de participação do analisante no discurso não haverá a emergência do real inconsciente.
O requisito é falar. Para que se produza o real, se deve produzir um efeito de fala.
No descobrimento freudiano, a escuta é a escuta poética.
“Na escuta o imaginário universal. Na interpretação o imaginário restrito da ciência” podemos ler no livro Freud e Lacan hablados.
E para esclarecer algo se pode dizer que tanto um ato falho como um poema situam uma abertura, exigem uma escuta de um verossímil que não é da ordem da significação, se não da ordem da metáfora e da metonímia, efeitos na fala dos processos inconscientes.

(fragmento do texto Mejor hablar, do livro Mejor Hablar, Maria Chévez, Editorial Grupo Cero, Madrid, 2006)

poema de bolsa

TEMPO


A última pata da centopéia
carrega o nome do tempo,
um inseto cruzando até o esquecido.
Rochas e paragens úmidas
o tornam mais sólido.

Quando chega seu veneno
não sei o que fazer com as feridas.

(Renata Passolini, do livro “Peldaños”, Editorial Grupo Cero, Buenos Aires, 2008)

sessão desvelada

ADRIANO

Campainha
Adriano, sempre pontual. Perfumado. Parece contente, mas não.
- Estou muito amargurado… Não sei nem como dizer… Luísa me disse que não me ama… NÃO ME AMA… assim ouvi, como um grito que me chegava até o nervo mais insignificante do corpo.
- Você se sentiu insignificante diante dela?
- Sim, pode ser. Sem mais sentido para ela. Um homem vazio… eu não queria a amar por que não queria sofrer se ela me deixasse, teria preferido deixar de amá-la eu.
- Mas se você a deixasse de amar, também iria sofrer. Deixar de sentir amor é muito triste.
- Ontem cheguei a meu escritório e a secretária me perguntou: Lhe ocorre algo que está tão triste? Eu não queria dizer a ela que sim, que estou com a alma em pedaços como diz o tango. Me sinto enganado por ela.
- Enganado por quê? Não cree que não a ama mais? Cree que é mentira que o amor morreu?
- Não sei falar sobre isso, me confunde um pouco. Na verdade eu me sinto enganado por que ela me disse que me amava e agora não me ama mais, e me parece que ama outro, me sinto enganado.
- Não lhe deu o seguro de amor contra terceiros que você tanto lhe havia pedido.
- Claro, não me deu nenhuma garantia. E agora diretamente me diz que não me ama. Ontem me chamou por telefone para me dizer que queria devolver um disco que deixei em sua casa. E me perguntou como estava... e eu não queria dizer que estava destroçado, e que agora me sinto sozinho, triste, amargurado, órfão.
- Órfão?
- …
- …
- Disse isso?
- Sim. Talvez recém agora, com este abandono, reconheça que perdeu sua mãe. Há, todavia, um órfão que chora em você cada vez que se perde um amor.
- Posso voltar amanhã?
- Às 9? Te espero.
- Sim, obrigada. Até amanhã.

Marcela Villavella


quinta-feira, 16 de julho de 2009

poesia cero

SIBILA


sutura de ópio
ao desabrigo

a morte
(pequena)
assembléia
mendiga

é
costura de madeira
virgem mutilado
odor de olaria

é
frescor arroio
espuma cansada
lavado sibilino

prenhe
caras morféticas
ladrilham


troço


o
dente engoma
novena
e
meninas
(eliane marques)

confábulas

AFRONTA SUPORTÁVEL


Um colaborador do sr. K foi recriminado por adotar uma atitude hostil em relação a ele. “Sim, mas somente por trás das minhas costas”, disse o sr. K para defendê-lo.

(Bertold Brecht, Histórias do sr. Keuner, editora 34)

diário de um psicoanalista

19 de agosto de 1977

O corpo me dói por que não consigo o estado animal para semelhante selva. Restos de humanidade perturbam minha adaptação. Restos de humanidade não me deixam. Restos, estranhos a mim, cinzas daquela relação onde tudo era fogo sobre fogo. Pequenos sentimentos de quando menino nos braços de minha mãe interferem a ponto de desbaratar todo o plano social.

(Miguel Oscar Menassa, El Ofício de Morir, Editorial Biblioteca Nueva)

quarta-feira, 15 de julho de 2009

quarta-com-cortázar







LEÃO E CRONÓPIO

Um cronópio que anda pelo deserto encontra um leão e tem com ele o seguinte diálogo:
Leão: - Vou comer você.
Cronópio (aflitíssimo mas com dignidade): - Está bem.
Leão: - Ah, assim não. Nada de mártires para cima de mim. Comece a chorar ou resista, das duas uma. Assim eu não posso comer você. Vamos, estou esperando. Você não diz nada?
O cronópio não fala nada e o leão fica perplexo, até que tem uma idéia.
Leão: - Ainda bem que eu tenho um espinho na mão esquerda que me incomoda muito. Arranque-o e eu o perdoarei.
O cronópio arranca o espinho e o leão vai embora, rugindo de má vontade.
- Obrigado, Ândrocles.

(Histórias de Cronópios e Famas, Círculo do Livro, São Paulo)

psicoanálise em recortes



O GRUPO


O grupo é uma máquina produtora de sentidos.

O grupo é uma máquina contra as máquinas. E, sem dúvida, estamos, todavia, no reino do humano.

A crueldade dos grupos é a crueldade das máquinas. A programação se cumpre sempre ao pé da letra.

(Miguel Oscar Menassa)

terça-feira, 14 de julho de 2009

+ psicoanálise

(Matisse)

Todo o mundo encontra seu destino e se torna cego frente a ele.

(Miguel Oscar Menassa)

frase feita

“Uno se cree a veces un superhombre, hasta que advierte que también es mezquino, sucio y pérfido.”

(Ernesto Sabato, in El Túnel)

verso b

A ROSA DOENTE

Ó Rosa, estás doente.
O verme que vadia,
Invisível na noite
De uivante ventania:

Achou teu leito feito
De prazer carmesin:
Seu negro amor secreto
Dedica-se ao teu fim.

(William Blake, Canções da Inocência e da Experiência, Editora Crisálida, 2005)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

poesia &psicoanálise




NÃO ME FAÇAM CORRER VOSSAS CARREIRAS

1

Não me façam correr vossas carreiras
nem me façam voar em vossos voos
nem me façam fazer vossos trabalhos
nem, tampouco, amar vossos amores.

Eu, filhos meus, com paixão,
os transportei voando,
sempre, a vosso lado,
desde os confins quietos da família
até as portas em liberdade do mundo.

Agora começa vossa viagem
e, se os deixo partir sem acompanhá-los,
é porque eu tenho minha própria viagem.
Devo pôr, no caminho que construi
com minha própria vida e escrevendo,
meu nome, meu sobrenome, minhas marcas,
meus sinais pessoais, que são a poesia.


2

No caminho encontrarão o ouro e a pobreza,
os precipícios fundos e as grandes planícies.
Haverá em vossos caminhos, não duvidem,
emboscadas, traições, vis injustiças,
por isso
é conveniente viajar acompanhado.

E, quando conseguirem algo de pão, algo de dinheiro,
tentem reparti-lo o melhor possível entre todos.
Alguém que comeu
e tem dinheiro para o pão de amanhã,
em algo se sentirá feliz e seu trabalho
não será dirigido pela fome ou pelo ódio
senão pelo amor ou pela liberdade.


(Miguel Oscar Menassa, La Maestria y Yo, Editorial Grupo Cero)

cadáver esquisito no Goethe








FERIDA NAS COSTAS PERNAS PR'O AR

Ferida nas costas pernas pr’o ar
conquista que dói
desnecessária de vida
de solidão de poesia de perfumes.

Para que tudo isso?

Se a exumação humana da
sensibilidade noturna
eterna despedida fugaz
trabalha o dar fala a um cadáver.

Animal mudo anjo da morte
a perambular woetschmerz
no universo que é só dobra
no vazio.

O que vemos como futuro,
os animais vêm como tudo
medo, dor, felicidade!

Renasce o momento
num ruído petulante
que jorra água de tudo.


(Criação coletiva produzida no 2° Movimento de Poesia, sarau promovido pelo Grupo Cero na Biblioteca do Instituto Goethe no dia 10 de julho de 2009)

domingo, 12 de julho de 2009

+ psicoanálise

(Matisse)

Vendamos a alma por um instante de gozo e seremos esse nada, essa irregularidade.

(Miguel Menassa)

poema de bolsa

JÁ FOMOS

Já fomos das altas montanhas
e dos velhos amores,
seus escravos.
E, sem dúvida, conservo
a nudez de suas margens,
os demônios em minha pele.

(Rosa Puchol Pérez, Grupo Cero Madrid, do livro “Armas de Mujer”, Editorial Grupo Cero)

sessão desvelada

IRENE

Campainha

- Quem é você?
- Sou sua vizinha do 11°B.
- Boa tarde, o que quer?
- Queria que me atendesse por que hoje tive uma crise nervosa e queria falar com alguém...
- Estou esperando um paciente, se quiser, pode vir daqui a uma hora e vemos um horário para ti na agenda.
- Não Doutora, não entendeu. Eu preciso que me atenda agora mesmo, por que tive uma crise nervosa
- Como é seu nome?
- Irene
- Bem, Irene, isto é um consultório, está certo que tenha tocado a campainha, mas ... não posso te atender agora mesmo por que estou esperando um paciente.
- Mas, se está falando comigo... quando vier o paciente que espere o paciente, eu tive uma crise nervosa, preciso de atenção urgente. Tens que me atender agora.
- Irene, não é possível.
- Sim, é possível, estamos aqui na entrada de seu consultório, você é uma psicoanalista e eu uma paciente, tens que me escutar, vim à procura de você para lhe dizer o que me passa.
- Bem, o que é que queres me dizer?
- Hoje pensei em matar meu marido. Ela tomava o café da manhã sem me olhar, lendo o diário e, de repente, me olhou e me disse: te odeio. E eu lhe disse: Como João Carlos??? Não entendi bem... Te odeio, me respondeu tranquilamente enquanto comia uma torradinha com marmelada de pêssego feita por mim, então olhei o tamanho da faca que estava sobre a mesa imaginando como eu a ia cravar no meio do seu coração.
- Parece que você odeia ele, quem sabe, muito mais que ele a você. Pelo menos ele o disse, você o quis matar sem lhe dizer uma palavra... Mas, a crise nervosa, qual foi?
- Eu disse que o amava enquanto olhava a faca e quanto mais imaginava como ia matar a esse porco paralítico, mais lhe dizia que o amava e mais nervosa ia ficando.
- O ódio é muito ruim.
- Num momento gritei a ele que o amava como nunca amei ninguém e me lancei sobre ele e lhe golpeei o peito no mesmo lugar onde queria cravar a faca.
- Te intimidou??? Fracassou?
- Como? Como lhe ocorre isso Doutora??? Eu nunca mataria meu marido!!! Isso me ocorreu pelos nervos. Ele também me ama, mas, às vezes, se cansa da rotina de todos os dias...
- CAMPAINHA
- Desculpe-me Irene, estão tocando a campainha, chegou o paciente, te dou um horário para mais tarde?
- Não, muito obrigada, você não me compreende. Melhor procurar outra psicoanalista que não se ponha às crises de casal, certamente você é separada!!! São todas iguais... melhor procurar um psiquiatra que entende melhor o que é uma crise nervosa. Não sei nem para que vim!!!! Por Deus!!!!
- Me parece uma boa decisão, adeus Irene, cumprimentos a seu marido

Marcela Villavella



quinta-feira, 9 de julho de 2009

+ psicoanálise

(Lasar Segall)

Se tolero não ser o que fui, posso ser feliz.
(Miguel Oscar Menassa)

confábulas

SEGUNDA FEIRA NA RUA CRISTINA

A mãe da porteira e a porteira deixarão passar tudo
Se és homem me acompanhará hoje à noite
Bastaria que alguém segurasse a porta-cocheira
Enquanto o outro subisse

Três bicos de gás acesos
A patroa é tuberculosa
Depois que terminares jogaremos uma partida de jacquet
Um regente com dor de garganta
Quando vieres a Tunis farei com que fumes kief.

Isto parece rimar

Pilhas de pires flores uma folhinha
Pim pam pim
Tenho de descolar quase 300 francos para o senhorio
Eu preferia cortar meu dito-cujo a soltar a essa grana

(André Breton, Manifestos do Surrealismo, Nau Editora, Rio de Janeiro, 2001)

diário de um psicoanalista

22 de agosto de 1976

Na devastação,
tenho intenções de fechar a última janela.
O último orifício por onde, ainda,
respiravam levemente meus pobres versos.
Te disse faz pouco,
não vá mais.

(Miguel Oscar Menassa, El Oficio de Morir, Editorial Biblioteca Nueva, Madrid, 1983)

quarta-feira, 8 de julho de 2009

venha ler e ouvir poesia


“4 movimentos de poesia”
série de saraus poéticos


2º Movimento
Rainer Maria Rilke
Local
Biblioteca do Instituto Goethe
Rua 24 de Outubro, 112 (2º andar) – Porto Alegre

Data
10 de julho de 2009 (sexta-feira)

Horário
19h

Entrada franca

Idioma
português, com partes em alemão
Promoção: Grupo Cero em parceria com o Instituto Goethe


Herbsttag

Herr, es ist Zeit. Der Sommer war sehr gross.
Leg deinen Schatten auf die Sonnenuhren
und auf den Fluren lass die Winde los.

Befiehl den letzten Früchten, voll zu sein;
gib ihnen noch zwei südlichere Tage,
dränge sie zur Vollendung hin und jage
die letzte Süsse in den schweren Wein.

Wer jetzt kein Haus hat, baut sich keines mehr.
Wer jetzt allein ist, wird es lange bleiben,
wird wachen, lesen, lange Briefe schreiben
und wird in den Alleen hin und her
unruhig wandern, wenn die Blätter treiben.

Rainer Maria Rilke
Dia de Outono

Basta, Senhor. Foi grandioso o verão.
Põe tua sombra sobre os relógios de sol,
e solta os ventos sobre os campos já sem grão...

Ordena adocem-se os frutos derradeiros.
Dá-lhes ainda uns dias meridionais,
aperfeiçoando-os. E dá ainda mais
doçura aos mais tardios cachos da videira.

Quem não tem casa agora, já não constrói mais.
Quem está só, o ficará por longos dias,
velando a ler, a redigir longas missivas, e caminhando inquieto por veredas frias,
a ver as folhas esvoaçar em espirais...

Tradução de Vitor Volker Gans

+ poesia

SOBRE UM MAR DE ROSAS QUE ARDE

Pedro Kilkerry

Sobre um mar de rosas que arde
Em ondas fulvas, distante,
Erram meus olhos, diamante,
Como as naus dentro da tarde.

Asas no azul, melodias,
E as horas são velas fluidas
Da nau em que, oh! alma, descuidas
Das esperanças tardias.

quarta-com-cortázar




INSTRUÇÕES PARA CANTAR

Comece por quebrar os espelhos de sua casa, deixe cair os braços, olhe vagamente a parede, esqueça. Cante uma nota só, escute por dentro. Se ouvir (mas isto acontecerá muito depois) algo como uma paisagem afundada no medo, com figueiras entre as pedras, com silhuetas seminuas de cócoras, acho que estará bem encaminhado, e do mesmo modo se ouvir um rio por onde descem barcos pintados de amarelo e preto, se ouvir um gosto de pão, um tato de dedos, uma sombra de cavalo.
Depois compre cadernos de solfejo e uma casaca e por favor não cante pelo nariz e deixe Schumann em paz.

(Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e Famas, Círculo do Livro)

psicoanálise em recortes


CRISE & GRIPE


O poeta Guillaume Apollinaire (nascido em Roma – 1880, por opção, francês, - naturalizado em 1914) lutou na 1ª Guerra Mundial como voluntário. Em 1916, feriu-se gravemente, mas não morreu na guerra, morreu dois anos depois, vitimado pela gripe. À barbárie da guerra, seguiu-se uma pandemia de gripe, milhares de pessoas desiludidas, entristecidas, deprimidas e melancólicas sucumbiram à grande gripe (vírus influenza “A-H1N1”). Em todo o mundo estima-se que morreram de 20 a 40 milhões de pessoas entre 1918 e 1919 desta pandemia.

E tu meu coração por que bates

Feito uma sentinela melancólica
Vigio a noite e a morte

Apollinaire

2009... o mundo sucumbe a uma grande crise econômica, e logo a seguir, há epidemias de gripes, uma delas iniciada justo nos países em que iniciaram a crise econômica, são eles Estados Unidos da América e México, epidemia prestes a se tornar uma pandemia.

Miguel Oscar Menassa, Diretor Internacional do Grupo Cero, Escola de Psicoanálise e Poesia, perguntado sobre a depressão pós-crise, diz que não é que as pessoas se deprimiram depois da crise, é o contrário, 80% dos homens entre 30 e 50 anos estavam deprimidos e aí sobreveio a crise econômica.

Lúcia Bins Ely, psicoanalista do Grupo Cero – Escola Brasileira de Psicoanálise e Poesia

terça-feira, 7 de julho de 2009

a conversação

(Henri Matisse)

frase feita

Uma página em branco e um desejo, às vezes, podem mais que mil pessoas todas juntas.
(Miguel Oscar Menassa)

verso b

toda a ignorância escorrega para o saber
e de novo se arrasta para a ignorância:
mas o inverno não é para sempre, mesmo a neve
derrete; e se a primavera estragar o jogo, que fazer?

toda a história é um desporto de inverno ou três:
que fossem cinco, eu seguiria insistindo que toda
a história é demasiado pequena até mesmo para mim;
para mim e para ti, excessivamente demasiado pequena.

mergulha(estridente mito coletivo)na tumba
tão-só para trabalhar a escala até à hiperestridência
por cada magda e marta e david
- amanhã é o nosso endereço permanente

e aí mal nos hão-de achar(se acharem,
mudaremos ainda mais para diante: para agora

(de e.e. cummings, xix poemas, Assírio & Alvim, 2ª Edição)

domingo, 5 de julho de 2009

+ psicoanálise

Livre, quero ser livre de todos os mortos, também dos mais amados.
(Miguel Oscar Menassa)

poema de bolsa

Ressurreição do amor
ou milagre da transferência



Deus, meu camarada,
onde estavas?
Te procurei por todos os lados
e só ontem mostraste tua cara.

E por onde andaste
contigo levaste a chama eterna?
Só ontem comecei a vibrar
no ritmo que hoje me arrebata.

Companheiro me diga:
Onde estava a alegria que anima essa manhã?
E o gozo pelos novos dias
e a música que vem do futuro?

Meu chapa!
Não me faça mais isso.
Se fores embora
deixa comigo o amor.
Anelore Schumann

sessão desvelada

MANUEL


Campainha.

Chega no horário, vem vestido de preto, porém elegantemente, se comporta como um sedutor, não havia notado esse jogo nele, porém, chega assim.
Se deita no divã. Toca a cortina que cai ao seu lado, brinca um pouco com isso antes de começar a falar.
- Te escuto Manuel, pode começar quando queira.
- Sim... já sei que me escuta. Gostei muito da sessão passada, me aliviei, o peito me doía tanto quando entrei, que me pareceu um milagre que a dor se transformasse em oxigênio, não sei como dizer, me abriu o peito, tinha vontade de seguir falando, tentar seguir dizendo coisas que me parece que nunca disse, nunca me escutei dizer... e não sei se é algo em particular o que tinha para dizer, porém queria seguir dizendo.Saí daqui e chamei Isabel por telefone, lhe convidei para jantar na minha casa para poder falar e falei. Ela me escutou sem me interromper, primeiro me pareceu que estava enojada de que eu, agora, em seu momento de me pedir algo mais, lhe dissesse isto: estás livre, vejamos quem somos livres desse compromisso com a morte. Eu não me deixava levar por seus estados de ânimo enquanto falava, apenas falava o que havia entendido na minha sessão. Depois me emocionei, senti que podia me despedir de meu irmão morto, senti que estava compreendendo sua maneira de morrer, sem que fosse nem minha morte, nem minha maneira de morrer, da qual não tenho idéia. Aí, ela começou a chorar em silêncio, suas bochechas estavam úmidas, as lágrimas corriam lentas, porém sem deixar de sair de seus olhos. Isabel, és generosa...
- generosa. Por que o disse?
- É generosa comigo, me deu tempo e atenção. Não quero perder essa relação, porém assim não posso mais, não é esse o caminho. Algum outro preço tenho que pagar por aquela morte.Quando morreu o irmão de minha mãe, ela sofreu muito, a mim parecia que não era para tanto, critiquei-a muito nessa época, me parecia exagerado, e como não estava feliz se nós, seus filhos, estávamos bem e a vida “nos sorria”...!!! Não podia entender... agora me lembro tanto desse momento. Na sessão passada me lembrei tanto desses momentos, é como se houvesse entrado mais vida em minha vida. Poder entender os outros, não sei como dizê-lo, porém hoje também me sinto mais generoso. A minha alma cresceu. Tenho vontade de chorar, porém não sei bem o que é essa pranto. O que sei é que não é por aquela tristeza imensa que me abraçou nestes meses. Porém queria chorar um pouco mais...
- Falar um pouco mais ... na sessão passada pediste mais sessões na semana ... quem sabe é falar um pouco mais.
- Pode ser, havia me esquecido disso, porém pode ser. Falar mais. Eu falava todos os dias com meu irmão.
- Todos os dias não o posso atender, porém uma sessão a mais por semana, poderíamos organizar.
- Sim, sim. Já não se trata de meu irmão, não??? Isso é que me está dizendo?
- Continuamos na próxima??? amanhã quarta-feira às 16?
- De acordo, até amanhã.

Marcela Villavella

sábado, 4 de julho de 2009

em cada vazio onde o tempo for um pulôver

AS TECEDORAS

Eu as conheço, as horríveis, as tecedoras envoltas em penugem,
em cores que crescem das mãos, do fio
até o coágulo trêmulo movendo-se na rede de dedos ávidos.
Filhas da sesta, lesmas pálidas escondidas do sol,
nas bacias deixadas nos pátios crescem seu veneno e sua paciência,
nas varandas ao anoitecer, nas calçadas dos bairros,
no espaço sujo de buzinas e lamentos de rádio,
em cada vazio onde o tempo for um pulôver.

Tecem estupidez, lágrimas e desmemoria
tecem, dia e noite tecem a roupa de baixo, tecem a bolsa onde se afoga o coração,
tecem sinos encarnados e luvas roxas para nossos joelhes.
Tece, mulher verde, mulher úmida, tece, tece,
Amontoa em tua saia matérias putrescíveis de onde brotaram teus filhos,
Essa lenta maneira de vida, esse óleo de escritórios e universidades,
Essa paixão de domingo à tarde na arquibancada.
Sei que tecem de noite, em horas secretas, levantam-se do sonho
e tecem em silêncio, nas trevas; já fiquei em hotéis
em que cada quarto às escuras era uma tecedora, manga de camisa
cinza ou branca saindo de baixo da porta; e tecem nos bancos,
atrás dos vidros embaçados, tecem nas latrinas e
nos frios leitos matrimoniais tecem de costas para os roncos,
e nossa voz é o novelo para teu tecer, aranha amor, e esse cansaço
nos cobre, agasalha a alma com ponto de cruz ponto de cadeia Santa Clara,
a morte é um tecido sem cor e o estás tecendo para nós.

Lá vem, lá vem! Monstros de nome flácido, tecedoras,
Dedicadas donas de casas nacionais, escriturárias, louras
manteúdas, pálidas noviças. Os marinheiros tecem,
as doentes cercadas de biombos tecem para a insônia,
do arranha céu descem enormes franjas de tecido, a cidade
está embrulhada em lãs que parecem vômitos verdes e roxos.

Já estão aqui, já se levantam sem falar,
somente as mãos onde agulhas brilhantes vão e vem,
e têm mãos na cara, em cada seio têm mãos, são
centopéias são centomãos tecendo num silêncio insuportável
de tangos e discursos.

(poema de Julio Cortazar do livro “Ultimo Round”, Editora Civilização Brasileira, 2008)

cadáver esquisito

QUASE INVENTO

recolho as velas cansadas
ancoro sonhos
sons toques vozes
entram, de novo,
no tempo

o último round da sepultura
anuncia a falta
diante de um fogo extinto
no quase invento
das risadas e poemas
(cadáver esquisito produzido no encontro poético do dia 04/07/2009, na sede do Grupo Cero, sob a coordenação de Marcela Villavella e participação de Lúcia, Barbara, Renato, Leonora, Anelore, Anelise, Vilma, Mara e Eliane)

notícia


Hoje pela manhã, às 11 horas, na sede do Grupo Cero, realizou-se mais um encontro com a poesia, sob a coordenação da poeta e psicoanalista argentina Marcela Villavella, autora, dentre outros títulos, de "Así es la Rosa" e "Bella de Siesta".
Depois da leitura de poemas de Bukowski, Orides Fontela, Stela do Patrocínio, Ferreira Gullar, Michel Deguit, Pablo Neruda, Rilke, Vicente Huidobro e Apollinaire, o grupo espantou o gelo das mãos com trabalhos de escritura a partir de palavras retiradas do "Último Round", de Julio Cortázar.

Um cadáver esquisito encerrou o encontro, que se repetirá no mês de agosto.

Mas quem estiver interessado em paricipar dos grupos de poesia, já na próxima quinta, às 8 horas, ou sábado, às 11horas, pode ligar para 3333-4394 e fazer a inscrição.
Até a próxima,
Verso b.





sexta-feira, 3 de julho de 2009

+ psicoanálise

(Caravaggio)

As ilusões morrem com o aparecimento do desejo.

(Miguel Oscar Menassa)

era uma vez...

O MUSEO DE ÉDIPO

Subiu a Rua Barão do Triunfo com seu largo passo negro e pouco engraxado por algum mendigo da praça central da cidade a quem gostava de fazer favores. A calça branca, justa, parecia engomada por uma tia caprichosa, e a camisa social, azul celeste, brilhosa, cheirava ao John Travolta dos Embalos de Sábado à Noite.
A cabeça baixa e zonza já denunciava o esquecimento de alguma informação desnecessária para a vida.
Lentamente, como quem vem de uma guerra, fez as pernas marcharem pelas escadarias da casa. Alcançado o ponto máximo até onde seu espírito pudesse alcançar – na beirada da porta – se postou, hirto, como quem bate continência, de modo a separar a entrada da sala do resto do mundo. Com seu corpo de mãos grandes na cintura e voz forte, situado no topo de uma forte dor, inesperadamente, gritou:
- Mas o que é isso? O cara chega cansado, olha para os lados e se depara com esse museu atirado nos cantos, isso não é coisa que se faça! Mas Maria, como é que tu me aprontas uma maldade dessas. Eu sou teu irmão ou a minha mãe me jogou na lata de lixo e essa aí me juntou.
“Essa aí” era a Idalina que, com boca grave e testa envergonhada, olhava em lamentação o filho, enquanto todos silenciavam da alegria que até então se processava:
- Mas o que houve José, por que isso?
- Eu é que pergunto por que estão fazendo isso comigo. Eu venho do trabalho. Carreguei rios e mares o dia inteiro. Estou cansado e desejo algo agradável. E, e ... aí encontro esse arcaísmo jogado num sofá de canto. Mas não pode ser que o sujeito não tenha direito de sonhar em paz em seu próprio lar.
- Mas por que tu não entraste pelos fundos e não foste para tua casa. José, essa casa aqui não é tua!
- Mas como não é? É sim. Eu nasci da tua barriga e, desde que tu aqui estejas, essa casa também é minha.
- Mas vai embora José, pelo amor de Deus!
- Essa coisa é que tem que ir embora. Sai daqui agora!
A Maria e a Madalena já haviam abandonado a sala onde antes conversavam com Idalina e outras amigas sobre um baile que iria ocorrer naquele mesmo dia no clube dos negros da cidade, o Farroupilha. José, na sua frustração, dançava com as palavras de ira:
- Maria, arrasta esse museu da sala!
De súbito, se ouve outra voz, fraca, medrosa, pronunciada com grande esforço.
- É comigo que tu está falando?
- É contigo sim, então, vê se pode, um cara trabalhador como eu tem direito de chegar à sua casa e ver um pouco de beleza e não um estrupício velho sentado na sala. E ainda de pernas cruzadas e varizentas. Maria, por que tu fizeste isso comigo?
- Cala a boca José! Era a Idalina que gritava.
- Vocês cometem esse crime contra mim, um crime contra os direitos humanos, artigo 4.1 do Pacto de San Jose da Costa Rica, lhes pego em flagrante delito e não querem que eu me rebele. Querem que eu engula essa falta de estética como se fosse aspirina para dor de cabeça? Não vou calar a boca, já perdi a cabeça de tanta alergia à feiúra. Tirem essa feia, esse símbolo do horror, essa mulher pavorosa e velha daqui. Me tirem esse museu da sala que suas rugas já atravessam minhas pupilas e me cegam como Édipo.
Enquanto as Outras riam no cômodo ao lado, a ultrajada Helena prometia ao José voltar no dia seguinte com a tesoura mais afiada que encontrasse no mercado, apenas para fazer a gentileza de lhe curar a cegueira visto que, como enfermeira, tinha grande prática em cirurgias de olho, e sem anestesia.
Eliane Marques

traduceiro

CAMPOS ENTARDECIDOS

O poente em pé como um Arcanjo
tiranizou o caminho.
A solidão povoada como um sonho
remanseou-se ao redor do vilarejo.
Os cincerros recolhem a tristeza
dispersa dessa tarde. A lua nova
é um fio de voz que vem do céu.
Conforme vai anoitecendo
volta a ser campo o vilarejo.

O poente que não cicatriza
ainda fere a tarde.
As cores trêmulas se acolhem
nas entranhas das coisas.
No aposento vazio
a noite fechará os espelhos.

(de Jorge Luis Borges, Primeira Poesia, Companhia das Letras, tradução de Josely Vianna Baptista)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

+ poesia

O PAJEM

Sozinho de brancura, eu vago – Asa
De rendas que entre cardos só flutua...
- Triste de Mim, que vim de Alma prá rua,
E nunca a poderei deixar em casa...

Paris, novembro de 1915

(Mário de Sá – Carneiro)

confábulas

O ESFORÇO DOS MELHORES

“Em que está trabalhando?”, perguntaram ao sr. K.
Ele respondeu: “Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro”.

(Bertold Brecht, Histórias do sr. Keuner, editora 34, 1ª edição, 2006)

diário de um psicoanalista


26 de abril de 1977

Ontem pude concluir alguns pensamentos sobre a vida em comunidade. No momento apenas são possíveis formas intermediárias.
A gente espera muito de mim, eu nada espero da gente, o intercâmbio, dessa maneira, fica entorpecido.
Uma vez solucionados os chamados problemas reais, dinheiro, casa, comida, trabalho, vejo aparecer os verdadeiros problemas.
ÁRDUO O OFÍCIO DA CONVIVÊNCIA, disse a besta.

(Miguel Oscar Menassa, Oficio de Morir, Diário de um psicoanalista, Editorial Biblioteca Nueva)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

+ poesia

A QUEDA

Da minha idéia do mundo
Caí.
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...

(de Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio, Companhia das Letras, 1998)

psicoanálise em recortes



Para que a vida possa ser outra vida, é imprescindível que a sexualidade seja outra sexualidade.

(Miguel Oscar Menassa)