quarta-feira, 25 de março de 2009

recortes de psicoanálise

No luto há dor e luz; na melancolia não há dor, apenas há uma sombra.

(Miguel Oscar Menassa, “La Depressión, una enfermedad sin rostro”, VI Congreso Internacional Grupo Cero)

+ poesia




PORQUE NÃO SOU UM PINTOR

Frank O' Hara
(1926-1966)

Eu não sou um pintor, sou um poeta.
Porquê? Penso que preferia ser
um pintor, mas não sou. Bom,

Mike Goldberg, por exemplo,
está a iniciar um quadro. Eu apareço.
«Senta-te e toma uma bebida» diz
ele. Eu bebo; nós bebemos. reparo
«Tu tens sardinhas aí».
«Sim, precisava de qualquer coisa ali.»
«Oh.» Eu saio e os dias passam
e eu eu apareço de novo. O quadro
avança, e eu saio, e os dias
passam. Eu apareço. O quadro está
terminado. «Onde estão sardinhas?»
o que resta são apenas
letras. «Era demasiado», diz Mike.

E eu? Um dia estou a pensar numa
cor: laranja. Escrevo uma linha
acerca de laranja. Em breve é uma
página que está cheia, não de linhas, de palavras.
Depois outra página. deveria haver
muitíssimo mais, não laranja,
palavras, como é terrível o laranja
e a vida. Os dias passam. Acontece ser
em prosa, sou um verdadeiro poeta. O meu poema
está terminado e ainda nem sequer mencionei
o laranja. São doze poemas, chamo-lhes
laranjas. E um dia numa galeria
vejo o quadro do Mike, chamado sardinhas.

(in «Vinte e Cinco Poemas à Hora do Almoço»,Tradução de José Alberto Oliveira)

quarta-com-cortázar


Morelliana.
Uma citação:
Essas, portanto, foram as razões fundamentais, capitais e filosóficas que me induziram a edificar a obra sobre a base de partes soltas – conceituando a obra como uma partícula da obra – e tratando o homem como uma fusão de partes do corpo e partes da alma – enquanto trato a Humanidade inteira como uma mistura de partes. Mas se alguém me fizesse tal objeção: que esta minha concepção parcial não é na verdade nenhuma concepção, mas sim uma mofa, um gracejo, uma troça e uma burla e que eu, em vez de sujeitar-me às severas regras e cânones da arte, estou tentando burlá-los, através de irresponsáveis troças, vaias e caretas, responderia que sim, que isso é certo, que exatamente esses são os meus objetivos. E, por Deus – não vacilo em confessá-lo – desejo esquivar-me tanto da vossa Arte, meus senhores, quanto de vós mesmos, pois não vos posso suportar juntamente com aquela Arte, com vossas concepções, vossa atitude artística e com todo o vosso meio artístico!

GOMBROWICZ, Ferdydurke, cap. IV.
Prefácio ao Filidor vestido de criança.

( - 122)

(Julio Cortazar, O Jogo de Amarelinha, Círculo do Livro S.A, p. 556)

terça-feira, 24 de março de 2009

+ psicoanálise

(imagens de caçador, de Esther Mahalangu)


A angústia estrutura um tempo do sujeito que o encerra em limites marcados para se preservar dela, da angústia, como também da castração e da sua própria morte.

(Depresión y Fobia, María Chévez Álvarez, VI Congreso Internacional Grupo Cero)

verso b


Tia Helen

(T. S Elliot)

A senhorita Helen Slingsby era minha tia solteirona,
E morava numa casinha próxima a um quarteirão elegante
Sob os cuidados de quatro serviçais.
Ela acaba de morrer e houve silêncio no céu
E silêncio no seu cantinho de rua.
Cerraram as persianas e o agente funerário esfregou-lhe os pés
- Ele sabia que esse tipo de coisa já ocorrera antes.
Os cães tiveram generosamente garantida a sua subsistência,
Mas logo depois o papagaio também morreu.
O relógio de Dresden continuou seu tiquetaque sobre a lareira,
E o lacaio sentou-se à mesa de jantar,
Aconchegando nos joelhos inchados a segunda criada
- Ela que fora sempre tão carinhosa enquanto sua patroa era viva.

frase feita


O entendimento não passa da soma de nossos mal-
entendidos.

(Haruki Murakami, do livro “Minha querida Sputnik, Objetiva, 2008, p.148)

domingo, 22 de março de 2009

(óleo sobre tela "políticos num vôo de lavagem de dinheiro", de Esther Mahalangu)

poesía buenos aires


Buenas relaciones

(de Raúl Gustavo Aguirre)

Los prisioneros se detestan
pero a pesar de su rencor
se tratán con educación.

Los prisioneros se detestan
pero no obstante, por dignidad,
jamás conversan con el guardián.

Los prisioneros se detestan
pero de noche mantienen diálogos
fingiendo que hablan solos.

Nesta sexta-feira, dia 20 de março, o Grupo Cero Brasil, por sua Escola de Poesia, deu seguimento aos encontros semanais com os grandes poetas. Dentre eles, Raúl Gustavo Aguirre (nascido em 2 de janeiro de 1927 ), que forjou, simultaneamente, sua obra e um movimento literário denominado Poesia Buenos Aires, que revolucionou o rosto da poesia argentina.
Para Aguirre, o estado de alerta e o estado de graça são apenas “um” no poeta.

Participe dos encontros “cero” de poesia, maiores informações pelo telefone 3333-4394 ou pelo site
www.grupocerobrasil.com.br.

pela Coordenação da Escola de Poesia

+ psicoanálise




lendo Miguel Menassa

O sentido geral da importância da psicoanálise na vida cotidiana nos leva a pensar em que moral sexual-cultural vivemos e quais são os desvios que se produzem por não poder suportar, o homem mesmo, essa moral sexual-cultural que se impôs.
Nossa cultura atual impõe uma moral que permite a procriação dentro dos limites estabelecidos como legais.
Diante da impossibilidade de se cumprir “humanamente” com as exigências que impõe tal moral, o homem-masculino gerou a dupla moral.
A dupla moral, mais além de indicar um poder, indica, fundamentalmente, o fracasso do sistema social.
Fracasso porque a segunda moral, na qual o homem pode, o que a mulher não pode, mais que o poder do homem sobre a mulher, mostra como o sistema social gerado sobre essa moral sexual-cultural da reprodução na legalidade, se faz insuportável não somente ao homem, a quem se gera uma segunda moral para que possa suportar semelhantes leis e exigências, senão também à mulher.

(de "Psicoanálisis y Vida Cotidiana" - Conferencia 1983)

poema de bolsa

goteiras
a flores olorosas
caem velhas

é urgente o desejo
de chorar na direção
mesquinha do pátio

chuva de ossos
que
amapola à calçada

e

com três velas
conserta
à pestilência da morte

baluarte
que faz dobrar os sinos
do canteiro


antes

agora

(de Eliane Marques)

sábado, 21 de março de 2009

Desculpem de novo


Deixem-me dizer só mais uma coisa, e então termino.
Não quero ofendê-Ios - ou à sua consciência, como vocês dizem. Sei que não querem que ela seja posta em dúvida. Tinha esquecido, me desculpem. Mas reconheço, reconheço que, para si mesmos, dentro de si, vocês não são tal como eu, de fora, os vejo. Não por má vontade. Gostaria que ao menos estivessem convencidos disso.Vocês se conhecem, se sentem, se apreciam de uma maneira que não é a minha, mas a sua; e ainda acreditam que o seu juízo seja o correto, e o meu, o falso. Deve ser, não nego. Mas a sua maneira pode ser a minha, e vice-versa?
Eis que voltamos ao princípio!
Posso crer em tudo o que me dizem. Acredito. Ofereço-Ihes uma cadeira, vocês se sentam, e vamos tentar chegar a um acordo.
Depois de uma boa hora de conversa, nos entendemos perfeitamente.
Amanhã vocês retomam, com o dedo em riste, gritando:
-- Como assim? O que você entendeu? Você não me disse isso e aquilo?
Isso e aquilo, perfeitamente. Mas o problema é que vocês, meus caros, nunca entendem; e eu nunca vou poder explicar-lhes como se traduz em mim aquilo que vocês me dizem. Sei que vocês não falaram turco, sei disso. Usamos, eu e vocês, a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos, eu e vocês, se as palavras, em si, são vazias? Vazias, meus caros. E vocês as preenchem com o seu sentido, ao dizê-Ias a mim; e eu, ao recebê-Ias, inevitavelmente as preencho com o meu sentido. Pensamos que nos entendemos, mas não nos entendemos de modo nenhum.
Ah, isso também é uma velha história, todo mundo sabe. E eu não pretendo dizer nada novo. Apenas volto a perguntar-Ihes:
- Mas por que, então, santo Deus, vocês continuam a fazer como se não soubessem disso? Por que insistem em falar de vocês, se sabem que, para serem para mim aquilo que são para si mesmos, e eu a vocês tal como sou para mim mesmo, seria preciso que eu, dentro de mim, lhes conferisse aquela mesma realidade que vocês conferem a si, e vice-versa. E isso é possível?
Infelizmente, meus caros, por mais que vocês façam, sempre me darão uma realidade a seu modo, mesmo crendo de boa-fé que seja a meu modo. E talvez seja, não digo que não, quem sabe; mas a um "meu modo" que eu desconheço e que jamais poderia conhecer, o qual somente vocês, que me vêem de fora, reconheceriam: portanto, um "meu modo" a seu uso, não um "meu modo" para mim.
Houvesse fora de nós, externa a vocês e a mim, uma senhora realidade minha e uma senhora realidade sua, digo, em si mesma, igual e imutável! Mas não há. Há em mim e para mim uma realidade minha, aquela que eu me dou; e uma realidade sua e de vocês, para vocês, aquela que vocês se dão - as quais nunca serão as mesmas, nem para vocês nem para mim.
E agora?
Agora, meus amigos, é preciso nos consolarmos com isto:
que a minha realidade não é mais verdadeira que a sua, e que tanto a minha quanto a sua duram só um momento.
Sua cabeça está girando um pouco? Então... então concluamos.
(passagem do livro do escritor italiano LUIGI PIRANDELLO (1867 – 1936) “Um, nenhum e cem mil”, Ed. Cosacnaify).

+ poesia



Flores – bem – se se pudesse
Esse Êxtase explicar –
Meio prazer – meio pranto –
Que elas nos podem causar.
Para quem fixar a fonte
Donde o fluxo contraflui –
Dou todas as Margaridas
Que uma colina possui.


Muito apelo em suas faces
Para o frágil peito meu –
Borboleta em São Domingos
Que a rubra trilha escolheu
Tem estéticos sistemas
Superiores ao meu.


( Emily Dickinson, do Livro: ALGUNS POEMAS, São Paulo, Iluminuras, 2008; tradução de José Lira)

tirinhas


sexta-feira, 20 de março de 2009

(Tudo é Vaidade, de Stephan Doitschinoff)

+ psicoanálise


Antes de me despedir quero lhes recordar, para que depois voltem a esquecer, que se formar como psicoanalista e/ou aceitar que um poeta viva em nós, são duas belas tarefas que muito bem fazem à humanidade, porém se deve saber que são tarefas para toda a vida e onde, toda a vida, de cada vez, se põe, toda ela, em jogo.
E isso é a vida de um criador: uma vida para outros.
Tomo o caminho dos meus versos e já ninguém me poderá dizer que não cumpri.

(Freud y Lacan – Hablados 2, de Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero)

traduceiro

O suicidado da sociedade


Havia muito tempo que a pintura linear pura me enlouquecia, até que encontrei Van Gogh que pintava, não linhas ou formas, mas coisas da natureza inerte como se estivessem em plena convulsão.
E inertes.
Como sob a terrível invectiva desta força de inércia da qual todos falam de modo cifrado, e que jamais foi tão obscura do que quando a terra e a vida presente se juntaram para elucidá-la. Ora, é com um golpe imprevisível, verdadeiramente com um golpe poderoso e imprevisível que Van Gogh atinge sem cessar todas as formas da natureza e dos objetos.
Cardadas pela ferramenta de Van Gogh, as paisagens
mostram
sua carne hostil, a hostilidade de suas entranhas expostas,
que não se sabe qual estranha força por outro lado está
prestes a provocar metamorfoses.

Uma exposição dos quadros de Van Gogh é sempre uma
data na história,
não na história das coisas pintadas, mas na história histórica mesma.
Por que não há flagelo da fome, nem epidemia, erupção vulcânica, terremoto, nem guerra, que excite as mônadas do ar, que torça o pescoço da figura feroz de fama fatum, o destino nevrótico das coisas,
Como uma pintura de Van Gogh – trazida à luz,
exposta à própria visão,
ao ouvido, ao tato,
ao cheiro,
nas paredes de uma exposição –
enfim lançada de novo na atualidade corrente, reintroduzida na circulação.


(fragmento de “Van Gogh, O suicida da sociedade”, de Antonin Artaud, tradução de Ferreira Gullar, José Olympio Editora)

era uma vez...




JOANINHA

(de Eliane Marques)


A casa de madeira verde-água ficava na Rua Tamandaré. O terreno sob o qual ataram suas pernas fora comprado com o dinheiro da escravidão do meu bisavô nas Minas de Butiá. Ele não encontrou a terra prometida – a morte lhe recolheu com seu véu de noiva, costurado com as pedras do meio da estrada. Sobraram as filhas, Joaninha e Ana, que enterraram a seco as roupas do pai. Não havia tempo para lavar em nenhum arroio de doces águas as mãos que tinham de andar.
Os ossos da Joaninha fiavam o dia e a noite, sem alvorada para descansar. Padeciam de um reumatismo que dobrava seu corpo, oculto à agulha da máquina de reclamar. Aplacaram as dores de sua velhice, que jamais chegou, os vestidos modelados para os passeios das sinhás. A solidão lhe doía quieta e trabalhadora.
O lar novo em Santana do Livramento, de uma indolência cansada, não se erguia. Os vizinhos, atentos à estrangeria negra e muda, carregavam dele - como crianças que depois de um passeio se negam a caminhar - paredes, janelas e portas. As construções engordavam a olhos vistos, à custa dos favores carpinteiros da casa preguiçosa do local.
Em pé, depois do sofrimento da primeira tábua erguida, vingaram-se as filhas. A casa - esqueleto foi vendida a um árabe, comerciante de tecidos, que, sem desculpa alguma, se interessava em prosperar.

quinta-feira, 19 de março de 2009

+ psicoanálise

E assim o homem vai pela vida assustado de sua supremacia sobre os outros reinos e faz divino (proveniente de Deus) o que não pode suportar como animal humano, quer dizer, as suas diferenças: o outro é linguagem, sobretudo.

(Freud y Lacan – Hablados 2, Editorial Grupo Cero)

confábulas


A rosa do poeta

(de Raúl Gustavo Aguirre)

Morte
onde não há nada
há uma rosa
todavia.

diários


BRECHT

EM TORNO DE 1952

Às vezes, sempre foi assim, entro em uma espécie de intranquilidade espiritual e me isolo, dirijo-me para um tipo de caverna e leio novelas policiais. O que não significa nada, minhas relações com meu meio ambiente não mudam com isso, fora por alguns momentos. Não tenho o controle disso.
Por natureza sou um homem difícil de ser dominado. A autoridade que não surja de meu respeito, eu rejeito com raiva; e só consigo considerar as leis como propostas provisórias que devem ser modificadas constantemente para regular a convivência humana.

(do livro “Diários de Brecht - Diários de 1920 a 1922, Anotações autobiográficas de 1920 a 1954”, Organizado por Herta Ramthum, tradução de Reinaldo Guarany, Porto Alegre, L&PM, 1995, p. 168)

quarta-feira, 18 de março de 2009

+ poesia



EU, QUE NADA MAIS AMO

(de Bertold Brecht)


Eu, que nada mais amo
Do que a insatisfação com o que se pode mudar
Nada mais detesto
Do que a profunda insatisfação com o que não pode ser mudado.

psicoanálise em recortes



O pai não existe. Esteve por lei, desde o princípio, morto.

(Freud y Lacan – Hablados 2, Editorial Grupo Cero)

quarta-com-cortázar



Teoria do buraco pegajoso

Chama-se por exemplo Ramón e traz o nome grudado assim como todo o resto, o que a gente vê dele e o que ele próprio vê dele. Poucos sabem que na realidade Ramón é um buraco pegajoso, ninguém consegue imaginar facilmente semelhante objeto. Até os quinze anos não havia nada, quer dizer havia apenas buraco cercado de amor materno e pulôveres e tabuadas e jogos de futebol. Então, quando acordou certa manhã o buraco teve, coisa por certo estranha, uma espécie de entrevisão de si mesmo, caiu em si como diz o professor de Bahia Blanca plagiando o de Freiburg e percebeu que precisava fazer alguma coisa para não estourar feito uma bolha de sabão. Num ato que não deixa de ter seu mérito, o buraco ficou pegajoso em sua borda externa, a bolha de sabão captou primeiro umas felpas no ar, depois o elegante costume de fumar tabaco inglês num lugar onde os outros fumavam fumo de rolo picado, e o nome de Ramón, flutuando até então por que era uma espécie de sinônimo do buraco, começou a se grudar firmemente, rodeou-se de um paletó de tweed, Ramón vestiu roupa esporte e comprou gadgets para resolver os problemas de higiene, da cozinha e do aquecimento, tornou-se uma autoridade em marca de creme de barbear, na melhor gasolina para carros suecos, na sensibilidade adequada do filme fotográfico num dia nublado, assinou o Time e a Life, fez uma idéia de Picasso e outra idéia dos toca –discos e das praias de veraneio e da alimentação, e lá vai ele carreira acima, subchefe, chefe e chefão, um especialista nas questões mais diversas, com uma voz cuja sonoridade só alguns poucos adivinham que lhe vem do buraco, que o buraco fala enquanto Ramón bate delicadamente seu cachimbo de urze comprado em Londres porque não existem cachimbos comparáveis, palavra de Ramón.
(do Livro "A Volta ao Dia em 80 Mundos", de Julio Cortázar, Civilização Brasileira, 2008)

terça-feira, 17 de março de 2009

verso b responde !!!



Por que na Psicoanálise tudo o que está tocado pela palavra se denomina sexo?

Porque essa é a sexualidade do ser humano, essa é a distinção radical. Nós, os seres humanos, falamos, distintamente do que ocorre com as demais espécies.
Essa é a nossa sexualidade. Não poderíamos chamar de sexualidade a genitalidade por que no “humano” ela – a genitalidade – está marcada pelas palavras. Ocorre uma espécie de perversão pela palavra, quer dizer, a sexualidade é nas palavras.

frase feita

(obra de Tarsila do Amaral)

Viver é um descuido prosseguido.

(João Guimarães Rosa)

verso b

o sul

(de Jorge Luis Borges)

De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
de um banco na sombra ter olhado
essas luzes dispersas,
que minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
no secreto poço,
o aroma de jasmim e madressilva,
o silêncio do pássaro que dorme,
o arco do saguão, a umidade
- essas coisas, talvez, são o poema.

domingo, 15 de março de 2009

(Portinari)

O que se interpreta, o que irrompe como ato, não depende tanto da escuta, como da poesia.

(de Miguel Oscar Menassa)

As atividades da Escola de Poesia Grupo Cero se iniciaram na sexta-feira, dia 13 de março.
Dentre os poetas lidos estão Michel Deguit, Miguel Oscar Menassa, Emily Dickinson e Raúl Gonzáles Tunón, a quem dedicamos um amor descabido pela sua rua de buraco na meia por onde o sol se deixa entrar.
Os “Poemas de Bolsa” 2 e 3, logo abaixo, são produtos do trabalho realizado nesse dia.

Bom começo!!!

pela Coordenação da Escola de Poesia

poema de bolsa 3


(de Lúcia Bins Ely)


paredes de vento
muro
de sonho

na dor

cemitério de ecos

cena que acorda
a rua pobre
de meninos.

poema de bolsa 2

(de Leonora Waihrich)

exílio de marinheiro
fatigado em ruidosas
paredes

amontoado de séculos

outros pesam
o vento
que sufoca
o nome
em falas surdas

poema de bolsa 1



Cry for me

(de Marcela Villavella)

Fragmentos,

minutos e segundos

o tempo se dilui...

é água, nunca ar.

O tempo é água

water

time

war

wedding money,

guiness record do relógio

surprise stop

en el camino de la vida

violenta máquina

de água

clepsidra de las horas

arrecifes de minutos

mania de viver.

O tempo é água,

água,

os dias são água

os pássaros que migram são líquidos,

aquáticas estações

nos levam.

O começo é de agua,

plácido flotar com o tempo contado;

gota a gota, a vida efetiva, e

ao final, a água

torrencial pranto

e sepultura.

Os mares se separam,

as gotas de chuva se juntam ao final...

e batemos contra esse frio cimento que nos cobre...

a terra, sim, a terra molhada

cry cry cry

ay ay ay

nossa juventude se escorre,

e o tempo?

Não, o tempo não.

Se escorrem as vozes,

a vida de alguém

se escorre.

Se abrem as bocas de tormenta

todas de uma vez.

E caio,

no pequeno vaso de água

que me deu Tuñón.

Me afogo,

me falo

me extirpo uma palavra

me opero

me mutilo

me chamo

me busco

e não me encontro mais.

sábado, 14 de março de 2009

(de Iberê Camargo)

+ poemas


Familiar

(Jacques Prévert)

A mãe faz tricô
O filho vai à guerra
Tudo muito natural acha a mãe
E o pai que faz o pai?
Negocia
A mulher faz tricô
O filho luta na guerra
Ele negocia
Tudo muito natural acha o pai
E o filho e o filho
o quê que o filho acha?
Nada absolutamente nada acha o filho
O filho sua mãe faz tricô seu pai negocia ele luta na guerra
Quando tiver terminado a guerra
Negociará com o pai
A guerra continua a mãe continua ela tricota
O pai continua ele negocia
O filho foi morto ele não continua mais
O pai e a mãe vão ao cemitério
Tudo muito natural acham o pai e a mãe
A vida continua a vida com o tricô a guerra os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.

verso b responde !!!


E essa tal de resistência?

Resistência é o termo que Freud utiliza inicialmente para designar a interposição do eu (moi) de maneira a interromper a progressão do discurso do paciente. Embora guarde esse sentido, ele também designa, em Lacan, uma dificuldade inerente ao próprio discurso na medida em que tem de transpor a barra entre o significante e o significado.

(do livro “Lacaniana I”, Moustapha Safouan, Editora Companhia de Freud, 2006)

tirinhas


sexta-feira, 13 de março de 2009

era uma vez...


CABELO DE FOGO

(de Eliane Marques)

Minha mãe acendera vela ao Santo. Pedia à entidade mais roupas sujas e menos chuva de tormentos. Enquanto dormia, o santo, até hoje inominado, trabalhava para atender à prece. Num descuido de apressamento, havia outros pedidos urgentes, bateu na vela do sacrifício que desmaiou sobre a boca da caixa de charutos na qual pairava. Contaminou-se de fogo fátuo a casa inteira. Tudo era fumaça e gritedo. Minha mãe, tias e a “abuela” corriam com baldes de água para aplacar a histeria das chamas. O criminoso fugira com medo do flagrante – deus fora chamado, com urgência, para derramar com mais vontade sua raiva contra as labaredas. Cada mulher tirava forças dos retratos viúvos que dormiam bravos no corredor das águas para, das gotas rancorosas, fazer carro de bombeiro. Entre elas havia um guri mais novo, de cabelo de fogo crespo, baixo e socadiço. Vendo aquele movimento de formigas em procissão, do alto da sede do sono quis saber:

- Já que vocês estão nesse vaivem, podem me atirar um copo dágua também.

(obra de Iberê Camargo)

traduceiro



Canto I

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.
Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.
Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano
Chegamos aos confins das águas mais profundas.
Até o território cimeriano,
E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios de sol, nem a
O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres.
Refluindo o mar, chegamos ao local
Premeditado por Circe.
Aqui os ritos de Perímedes e Euríloco e
“De espada a cova cubital escavo.”
Vazamos libações a cada morto,
Primeiro o hidromel, depois o doce
Vinho mais água com farinha branca.
E orei pelas cabeças dos finados;

(Fragmento do Canto I de “Os Cantos”, de Ezra Pound, tradução de José Lino Grünewald, Editora Nova Fronteira)

verso b responde!!!




O que é futuro anterior?

O sujeito psíquico está determinado a partir do futuro. Porque não é a morte ocorrida, nem é o pai terrorífico o que determina a sua vida, senão que é algo que não aconteceu, quer dizer, a própria morte. E essa é toda a falta do sujeito.
Tal tempo, determinante do sistema psíquico, chama-se futuro anterior. Ele marca que é o presente quem determina seja o passado um fato ou não, é ele quem determina que a transferência seja a técnica pela qual frases serão geradas - os símbolos, capazes de dar conta daquele passado. Não é que se modifique o passado, modifica-se a sobredeterminação.

quinta-feira, 12 de março de 2009

+ poesia


MOTIVO


Eu canto porque o instante existe
e minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.


(de Cecília Meireles, “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, Editora Objetiva Ltda.)

diários



BRECHT
abril, 1921

24, domingo

Mais uma vez sozinho. Cas me arrasta pela galeria de quadros, onde eu rio todo tempo, Otto derrama café em mim, chove, e as coisas parecem ajeitar-se na neblina. As árvores são verdes, tem um casamento no outono e antes o batizado da criança. O pai é um gênio, a criança está com roupa nova, o Taiti é uma bela região. O filme comporta-se com teimosia, se der leite, Bi poderá passear de pijama. Quem pergunta o que é melhor?
Um segundinho que vou deitar na grama!
Chove nas árvores, mas eles gritam sem parar nos botes de madeira no lago. Tomei café com Heilgei, agora toco violão com Hartmann. A vida segue assim.

(do livro “Diários de Brecht - Diários de 1920 a 1922, Anotações autobiográficas de 1920 a 1954”, Organizado por Herta Ramthum, tradução de Reinaldo Guarany, Porto Alegre, L&PM, 1995, p. 84)

recortes de psicoanálise


O AMOR AMADURECE NO DIVÃ


texto da psicoanalista e poeta Barbara Corsetti, apresentado na Feira do Livro de Porto Alegre, em 15 de novembro de 2008.


PARTE 2

Sim, ali onde reside um paciente sempre algo há, algo sempre há e essa é a questão. E o que há? Há o desejo sexual inconsciente reprimido infantil encoberto. Eis a criatura da psicoanálise, eis a força que pulsa no inconsciente, eis o inconsciente, a bola da vez na psicoanálise!
Pagar para que uma pessoa escute o que se tem para falar é pagar para existir. E isso significa pagar para que exista um espaço que seja seu, chamado de seu e anotado na agenda como ocupado para ser seu. Nesse lugar o psicoanalista está livre de si, está esperando por quem chegar naquele dia, tenha o nome que tiver, pois sempre é outro sujeito a cada dia.
Essa recepção do analista permite que o paciente possa chegar como vier, é o que abre as possibilidades do paciente inventar outro de si para si mesmo, sem que precise se preparar de um jeito já conhecido, sem que precise se pensar como foi ontem, sem precisar carregar as malas pesadas dos rótulos que foi e quer deixar de ser.
E esse é o ponto chave do tratamento psicoanalítico. É ali nessa trama armada pela transferência que se estabelece a possibilidade de outra vida ser construída pelo paciente. Nesse espaço aberto para que um novo sujeito apareça e que ainda não tem forma estabelecida, que não tem consistência, que não tem família, que abandona e escolhe suas ideologias, que respeita a ética de seu próprio desejo é onde a construção de um amor é possível, pelo fato de o paciente estar ali disposto a falar enquanto o analista está ali disposto a ouvir.
Freud nos disse que não importa a resistência que aconteça, quanto maior a resistência, maior também é a transferência estabelecida. E se maior for a transferência significa que mais próximos estão paciente e analista, e isso possibilita que o analista possa conversar diretamente com o inconsciente do paciente e é assim que o paciente conhece sobre si.
Quando o analista interpreta sobre o desejo inconsciente, por exemplo – quando diz que o paciente funcionou para que determinada situação acontecesse, seja ela promoção, gravidez, acidente, traição, sintoma, demissão ou uma viagem, seja o que for, é no momento em que o analista interpreta o desejo falado, e que o paciente escuta o que ele mesmo falou e de como funcionou em ato, é nesse instante que o paciente passa a ter propriedade sobre aquele ato e desde então não é mais inocente sobre si e sobre as artimanhas de seus desejos inconscientes como era antes, quando estavam reprimidos e encobertos.
Uma vez que o paciente sabe sobre o não sabido, sobre o desconhecido e que entende que o seu inconsciente atua com sentimentos primitivos, que desde a infância pululam em um caldeirão onde moram as identificações, as raivas, os ódios e os amores não lapidados, e que sem pedir licença esses sentimentos primitivos chegam nas situações mais impróprias sob formas inusitadas através das famosas crises, ou chiliques, ou desatinos, ou DRs intermináveis, seja o nome que for escolhido, ali é quando acontece uma posta em ato do inconsciente e é ali que o paciente tem a chance de construir um novo amanhã, um novo projeto e uma nova vida.
Isso do que estamos falando é como funciona o inconsciente, na linha da linguagem psicoanalítica que estuda, analise e interpreta as pulsões primitivas, são esses os sentimentos que ainda precisam ser reconhecidos pelo sujeito, trabalhados delicadamente em análise para que se transformem e alcancem o trabalho e o amor do qual Freud nos propôs.
E por que dei toda essa volta?
Foi pra te dizer melhor sobre o caminho do amor!
O amor tem um caminho longo a trilhar e que não tem fim enquanto se está vivo, somente a morte pode dizer basta ao amor, e talvez nem ela, afinal o amor fica registrado em um livro, em uma carta, em uma foto, em uma macarronada, em um filho, em uma amizade, em uma lembrança.
O amor que nasce no divã permite que o mundo cresça, que o universal apareça e que o sujeito psíquico aconteça e amadureça.

quarta-feira, 11 de março de 2009

mais poesia

(obra de Portinari)

VAI TUDO EM MIM

(Ivan Junqueira)

Vai tudo em mim, enfim, se despedindo
neste pomar sem ramos ou maçãs,
sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs
que me recordem o que foi e é findo.
Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs
do que eu não fui agora vão cobrindo
os ermos epitáfios, indo e vindo
entre as hermas e as lápides mais chãs.
Tudo se esvai num remoinho infindo
de atávicas moléculas malsãs:
essas do avô, do pai e das irmãs
que o sangue foi à alma transmitindo.
Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo
em meu encalço vem me perseguindo.

(do livro “O Outro Lado”, Ivan Junqueira, Poemas, 1998-2006, Editora Record)

quarta-com-cortázar




Por que tão longe dos deuses? Talvez por perguntá-lo. E daí? O homem é o animal que pergunta. No dia em que soubermos verdadeiramente perguntar, haverá diálogo. Por enquanto, as perguntas afastam-nos vertiginosamente das respostas. Que epifania poderemos esperar se estamos nos afogando na mais falsa das liberdades, a dialética judaica-cristã? Faz-nos falta um Novum Organum de verdade, é preciso abrir de par em par as janelas e lançar tudo para a rua, mas sobretudo também é preciso lançar a janela, e nós com ela. É a morte, ou sair voando. É preciso fazê-lo; é preciso fazê-lo de qualquer modo. É preciso ter coragem para entrar no meio das festas e colocar na cabeça da esfuziante dona da casa um belo sapo verde, presente da noite, e assistir sem horror à vingança dos lacaios.

(do "O Jogo de Amarelinha", de Julio Cortazar, Círculo do Livro S.A. - 31)

psicoanálise em recortes


O AMOR AMADURECE NO DIVÃ



PARTE 1

texto da psicoanalista e poeta Barbara Corsetti, apresentado na Feira do Livro de Porto Alegre, em 15 de novembro de 2008.

E quando perguntaram para Freud o que era ser um homem normal, ele respondeu – AQUELE QUE SABE TRABALHAR E AMAR!
Essa é a razão de estarmos aqui hoje, porque esse homem confiou na força do seu trabalho e construiu um amor. E assim podemos hoje trabalhar e falar sobre o inconsciente. Esse é o trabalho da psicoanálise e para essa missão o fundamental é o amor.
Quando se decide cair no divã, se decide também abrir uma janela para um novo mundo, e outro discurso vai entrar por essa janela e nele vai chegar também a transferência.
Essa transferência de que fala a psicoanálise diz do processo inconsciente e de como ele funciona para se mostrar em atos, diz também de como funciona para construir o próprio sujeito. A transferência está em todos os lugares, no trabalho, na padaria, no shopping, e em todos os ambientes que o sujeito estiver, mas apenas em um lugar se fala dela e com ela, e esse lugar é em análise.
A transferência é que permite a escuta analítica.
Quando o paciente começa falar as associações correm através da fala e essa é a matéria prima com a qual a psicoanálise trabalha.
Deitar no divã pode parecer uma situação esquisita, e digo do esquisito espanhol que o dicionário traduz como “diferente”, e que de fato é muito diferente, pois deitar em um divã, numa sala que pouco se conhece e começar a falar associativamente pode ser a cena mais sinistra já pensada.
Mas o associar livremente que a psicoanálise propõe permite que os fantasmas apareçam e que todas as curvas do inconsciente se desvendem.
O falar associando livremente parece difícil de se desenrolar no princípio da análise e a única impressão que se tem é de que é preciso trazer algo pronto pra falar em sessão, um assunto já armado, um tema para ser trabalhado no dia em que a sessão está marcada.
Mas a surpresa se dá quando o assunto se transforma e toma outra tonalidade, diferente do início da fala, diferente daquela idéia que se imaginou, e aquilo que parece ser tão fácil fazer quando se está só em um quarto ou banheiro, ali no divã, com outra pessoa, sentada atrás ou ao lado, parece ser o mais complicado possível.
Mas nesse sujeito sentado logo atrás, disposto a escutar, a espera que as palavras comecem a viajar pelo ar, reside um espaço aberto para escuta, e basta um suspiro de angústia pra que ele interprete que algo há.

terça-feira, 10 de março de 2009

frase feita

(obra de Botero)

Amiga, pequeña amiga, qué horrible es estar triste y los poetas creen lo contrario.

(Raúl Gonzáles Tuñon, de “La Calle del Agujero en la Media/Todos Bailan"; Buenos Aires, Seix Barral, 2005.)

VERSO B


Sim, tu, minha outra eu mesma na forma enfeitiçada de outra pele
cingida ao memorial do rito e da preguiça.
Não feitiço, donde rangem com asas de lagosta os espíritos postos a secar;
não talismã, como uma estrela alheia enganchada na proa da própria escuridão;
não amuleto, para aventar os negros semeadores do azar;
não gato em sua função de animal gato;
senão tu, o totem palpitante na cadeia quebrada de meu clã.
Esse vínculo como um intercâmbio de segredos em plena combustão!
Esse sopro recíproco infundindo os sinais do mal, os sinais do bem,
em cada tempo e a qualquer distância!
Essas sortes ligadas sob o lacre e os selos de todos os destinos!
Não guardavas acaso minha alma ensimesmada como uma tromba azul entre tuas sete vidas?
Não custodiava eu tuas sete vidas,
semelhantes a um noturno arco-íris no meu espaço interior?
E este rumor e esse chiado,
este remoto jorro de borbulhas soterradas
e esse rouco zumbido de abelhas em suspenso entre os labirintos de teu sangue,
não seriam acaso meu mantra mais oculto e teu indizível nome
e a palavra perdida que ao se refazer refaz com plumas brancas a criação?

(fragmento X de "Cantos a Berenice", de Olga Orozco)

PERSEGUINDO O ESTRANHO


Por ora falarei apenas daquelas coisinhas que comecei a fazer em forma de pantomimas, na tenra infância da minha loucura, em frente a todos os espelhos de casa, espreitando por todos os lados para não ser flagrado por minha mulher, na espera ansiosa de que ela, saindo para fazer compras ou alguma visita, finalmente me deixasse sozinho por um bom tempo.
Não queria fazer como um comediante, que estuda os movimentos e compõe no rosto as expressões dos vários sentimentos e estados de espírito. Ao contrário, queria surpreender-me na plena naturalidade dos meus atos, nas súbitas alterações da face, a cada oscilação do ânimo: por exemplo, num espanto imprevisto (e alçava de repente as sobrancelhas até a raiz dos cabelos, arregalando olhos e boca e alongando o rosto como se um fio interno me esticasse); ou num sofrimento profundo (e franzia a testa, imaginando a morte de minha mulher, e semicerrava as pálpebras sombrias como se quisesse recobrir aquela dor); ou numa raiva feroz (e rangia os dentes, imaginando que alguém me houvesse esbofeteado, e dilatava as narinas, avançando as mandíbulas e fulminando com os olhos).
Mas, antes de tudo, aquele espanto, aquele sofrimento, aquela raiva eram fingidos e nunca poderiam ter sido autênticos, porque, se o fossem, não os teria podido ver, pois logo teriam cessado pelo simples fato de que eu os via. Em segundo lugar, os espantos que me poderiam assaltar eram muitos e variadíssimos, tal como as expressões correlatas, imprevisíveis, sem fim, variáveis segundo os momentos e as condições de meu espírito - o mesmo valendo para todos os sofrimentos e todas as raivas. Enfim, ainda admitindo que, para um único e determinado espanto, para uma única e determinada raiva, eu tivesse realmente assumido aquelas expressões, estas eram como eu as via, e não como os outros as percebiam. A expressão daquela minha raiva, por exemplo, não teria sido a mesma para alguém que se sentisse ameaçado por ela ou para um outro disposto a desculpá-Ia ou para um terceiro que se risse dela, e assim por diante.
Ah, quanto ainda me faltava para entender tudo isso e poder tirar da evidente inexeqüibilidade desse meu insano propósito a conseqüência natural de renunciar à empresa desesperada e simplesmente ficar contente de viver no meu canto, sem querer me ver e sem me preocupar com os outros.
A idéia de que os outros viam em mim alguém que não era eu tal como eu me conhecia, alguém que só eles podiam conhecer olhando-me de fora, com olhos que não eram os meus e que me davam um aspecto fadado a ser sempre estranho a mim, mesmo estando em mim, mesmo sendo o meu para eles (um "meu" que, portanto, não era para mim!), uma vida na qual, mesmo sendo a minha para eles, eu não podia penetrar, essa idéia não me deu mais descanso.
Como suportar em mim este estranho? Este estranho que eu mesmo era para mim? Como não o ver? Como não o conhecer? Como ficar para sempre condenado a levá-Ia comigo, em mim, à vista dos outros e no entanto invisível para mim?

[Passagem do livro do escritor italiano LUIGI PIRANDELLO (1867 – 1936) “Um, nenhum e cem mil”, Ed. Cosacnaify, pág. 32]

domingo, 8 de março de 2009


MULHER, DÁ POESIA

poema de bolsa 2



Tropeço com as pedras

(de Leonora Waihrich)


tropeço com as pedras
pinto no papel
sinistra cinza

armadura
para quando chegue a noite

(do livro “Arado de palavras”, Editorial Grupo Cero)

poema de bolsa 1














Se precisasse uma razão

(de Marcela Villavella)

Se precisasse de uma razão para o poema
Uma razão para o abraço
Para estar submetida ao corpo
folhas caídas dos calendários
Se precisasse de uma razão para a noite
Para a rua nua de milagres
Para chorar pelos mortos,
Para sair das tumbas
A cada dia.
Se precisasse
Razões
Precisas
Párias
Porcas
Porfias
Razões
Para seguir te amando…
Se precisasse estes versos
Para o adeus ...

sessão de psicoanálise

(obra de Diego Rivera)


Começar a pensar o nome do pai


Para pensar o nome do pai teremos de elaborar muitos dizeres, andar por caminhos complexos e impuros. Porém, se partirmos da frase “o pai está morto”, as impurezas nos levam a pensar “ a morte do pai” desde a frase de Nietzsche: “Deus está morto”. Essa frase, em si mesma, não nos convence. A primeira base para prová-la é a enunciação de Freud como interpretação analítica de que a religião repousaria sobre algo primário no qual o Pai é reconhecido como merecedor de amor.

É o indício de um paradoxo concernente ao fato de que, em definitivo, a psicoanálise preferiria preservar o campo da religião: “Deus está morto”, derivaria na lei, se consolidaria mais.

Na frase do velho pai Karamazoff: “Se deus está morto, então tudo é permitido” a conclusão que se impõe é que “Deus está morto, então, nada mais está permitido”. Então? ... Seguimos falando sobre o tema na próxima vez.

Marcela Villavella, psicoanalista e poeta

sábado, 7 de março de 2009

tirinhas


(obra de Siqueiros)




gotas de psicoanálise



E assim também o inconsciente, um não-lugar onde todos os mundos encontram um lugar, e então não já inscrição, senão tempo emergindo que separa de toda estrutura e de toda estruturação.

(Norma Menassa, “Cuerpo de Escritura”, Actas – Segundo Congreso Internacional de Poesia y Psicoanalisis, Editorial Grupo Cero)

era uma vez


O CARNICEIRO

(de Eliane Marques)

O clarinete do Tuga havia sido presente de sua mãe. Aprendera a manejar o instrumento com um velho, tocador de requinte. O “Pobre Homem”, o “Casaca Branca” e o Duque eram seus companheiros de madrugada nos bailes do fim de mundo daquela fronteira do Brasil com o Uruguai. Eu nasci numa linha de fim do mundo. Hoje me dou conta dessa catástrofe e me apavoro. Bem, o trabalho do abuelo ia além do clarinete. A fim de colaborar com o sustento da família, trabalhava como serrador no Frigorífico da cidade que, anos depois, fechou deixando vários padecentes do desemprego, de alguma doença ou da irrealidade da vida. Minha mãe sofria do palpite de que desde sempre o Tuga padecera desse mal, ao qual prefiro chamar de “complexo da unitariedade”, pois quando recebia seu salário, o abuelo tratava de comprar, imediatamente, 1 fardo de apenas 1 dos alimentos passíveis de serem consumidos por humanos. Não passava nada se fosse a vez do feijão ou da massa. Mas na hipótese de exclusividade do açúcar ou pior, do sal, minha mãe atravessava a Carolina a pé, com meu irmão no carrinho de bebê, e rogava ajuda à outra avó, com morada na subida do Grêmio Santanense, que perguntava, apenas, se o marido da filha portava a mesma doença do sogro, visto seu sumiço por dias ou semanas sem que ninguém soubesse dele.
Nem sempre fora assim. Certa feita, o Tuga guardou um pacote cheiroso em cima do armário da cozinha até a chegada da minha avó, que saía muito tarde do colégio onde labutava. O meu pai, querendo saber do que se tratava, aproximou uma cadeira para subir no móvel e, com as mãos cegas, pôs-se a vasculhar a parte superior do armário entulhado de objetos. Para o seu berreiro curado apenas com açúcar, o móvel caiu por cima dele que, além de ter o braço quebrado, viu um bezerrinho pelado sair correndo porta a fora.
Na verdade, quando meus tios e pai estavam na infância era comum o abuelo ser esperado por eles. Os pezinhos saltitavam de barro e de alegria ao vê-lo dobrar a esquina da Rua Brasília, com seu avental berrando sangue e, bem enrolado, já cozinhando dentro de um tecido debaixo do braço, um bezerrinho para o jantar a ser preparado pela abuela. O carniceiro negro, ao observar que a próxima vaca na fila do esquartejamento estava prenha, tratava logo de fazer parir o bichinho que, já morto, faria a alegria dos filhos. E vem a lua de luanda para iluminar a rua.

sexta-feira, 6 de março de 2009

traduceiro

O irremediável

I

Uma Idéia, uma forma, um Ser
Vindo do azul, que se dirige,
A um plúmbeo e lamacento Estige
Que o olho do Céu não pode ver;

Um anjo, imprudente viajor
Que tentou amar o que é disforme,
No mar de um pesadelo enorme
A debater-se o nadador,

Lutando, angústias sombrias!
De redemoinhos os mais loucos
Que vão cantando cantos roucos
Fazendo nas trevas acrobacias;

Um preso de feitiço grave
Em suas buscas pueris
Para evadir-se dos reptis,
Procurando a luz como a chave;

Um condenado a descer sem lâmpada
A orla de abismo cujo odor
Trai o profundíssimo humor
De eternas escadas sem rampa,

Cheia de monstros horríveis,
Cujos olhos fazem fosfóreos
Mais escura a noite em que jazem
E onde só eles são visíveis;

Um navio na solidão
Do polo, um fojo de cristal,
A andar por estreito fatal,
Que aqui tombou numa prisão;

- Este quadro à memória traz
De uma sorte atroz e vã
E nos faz pensar que Satã
Faz sempre bem tudo o que faz.


(As Flores do Mal, Charles Baudelaire, LXXXVII, tradução de Pietro Nasseti, Editora Martin Claret)

quarta-feira, 4 de março de 2009

outra poesia

(de Eliane Marques)
um cão vagamente triste
reza a um deus sem cara
um deus de miradas cegas
largas feito unhas mortas

um cão me sonha
espelho que impõe
seu resto de sobras
seu ontem e seu nada

me assombra que seja bela a calçada
que o jasmim seja branco
que a fome me dê um ímpeto de asas

me assombra que a parca
corte minha linha
que viajante, perca a jornada

me assombra que séculos depois
o deus volte a nascer
rei na dinamarca

psicoanálise em recortes

Chama-se campo do Outro (grande outro) todo o espaço no qual se usa como recurso a palavra.

(Lúcia Cristina Serrano, em “Hablando con “a”, um mundo de ausências”, Actas, Segundo Congreso Internacional de Poesia y Psicoanalisis, Editorial Grupo Cero)

quarta-com-cortázar


Facetas de Morelli, seu lado Boulevard et Pécuchet, seu lado compilador de almanaque literário (em dada ocasião chama de almanaque o conjunto de sua obra).
Gostaria de esboçar certas idéias, mas é incapaz de fazê-lo. Os desenhos que aparecem à margem das suas notas são péssimos. Repetição obsessiva de uma espiral trêmula, com um ritmo semelhante ao das que adornam a stupa de Sanchi.
Projeta um dos muitos finais de seu livro inacabado e deixa uma diagramação. A página contém uma só frase: “No fundo, já sabia que não se pode ir mais além, porque não existe”. A frase repete-se ao longo de toda a página, dando a impressão de um muro, de um impedimento. Não tem ponto, nem vírgulas, nem margens. De fato, um muro de palavras ilustrando o sentido da frase, o choque contra uma barreira por trás da qual nada existe. Todavia, embaixo, à direita, numa das frases, falta a palavra o. Um olho sensível depressa pode descobrir o vazio entre os tijolos, a luz que passa.


(- 149)

(de Julio Cortázar, do livro "O Jogo de Amarelinha", Círculo do livro S.A.)
(obra de Diego Rivera)

terça-feira, 3 de março de 2009

outra poesia








tempo de ouro quebrado

(de Barbara Corsetti)



Antes silêncio


Agora ilusão de aranha


Mais uma sobra no canto

Ali
Ligeira e atenta
Apalpando luvas e folhas
lineando mais uma febre

Cada dedo estala todas as vozes

Filho do lúgubre cheiro
Verte caixas esmaltadas e tijolos antigos

Eleva mais um elefante

Carroças inteiras de peixes ilustres irão à festa

Banhados de laranja e perfumados em pimenta

Cada um será levado

A outro endereço

Cada um seguirá

o descartado de ontem


Uma curva ingrata despencou


e o verso?


O verso que brindou o urso dos tempos


É deixado ali


às rainhas árvores

“que elas escondam os medos nas sombras”


Esse é o pedido do medo

que viu na árvore


o pôr do sol lento dos tiros

Sem pressa

e ainda pensa que chegou ao fim

o mapa










frase feita

(Sabá das Bruxas, Goya)


Geralmente a depressão é grave quando não concebida pelo sujeito como parte de sua vida normal.

(Miguel Oscar Menassa, La Depresión, una enfermedad sin rostro – VI Congresso Internacional Grupo Cero, 1998, Editorial Grupo Cero)

verso b

A MORTE DO HOMEM
(Miguel Oscar Menassa, 1976)



É outra vez de noite
e em geral
a casa dorme.

Uma voz na rádio
diz últimas palavras.
Me entretenho com a fumaça
e me ocorrem mil fantasias
e nenhuma tem a ver
com deitar-me
tranquilamente na cama
e dormir.

Entre tantos papéis
terminarei sendo um escritor
e fixo meu olhar na distância
e deixo que a história do homem
irrompa
com a violência de sua sina
minha noite.

Acendo cigarros aos montes
um atrás do outro como se fossem
cintilantes granadas contra os opressores.

Há milhões de anos
o homem vive de joelhos.

As granadas estouram em meu rosto.

Primitivas presenças
povoam minha noite de selvagens ritos.

Cerimônias onde a morte
sempre é uma canção
sublime e misteriosa.
Bestas indomáveis
semelhantes ao homem
pela torpeza
de seus movimentos
dançam ao meu redor
iracundos
silvestres.

Num mau castelhano
me dizem que seu chefe
quer falar comigo.

Sentado em minha cama escrevendo
peço que deixem de rugir tambores
que cesse a dança
que me deixem escrever este poema.

O homem tem fome e sede há milênios.

Somos esse homem faminto e sedento poeta
canta conosco:
Viemos da Mesopotâmia

e do Caribe
e buscando a perfeição chegamos
até os mundos que se escondem
por cima do céu
e não encontramos nada.

Sempre há um homem que tem fome.
Sempre há um homem que morre de sede.

Aqui mesmo poeta
em tua casa
aninham o opressor e o oprimido.

Sentado sobre minha cama escrevendo
digo aos selvagens
que já é avançado da noite
que por favor deixem de dançar
que necessito
fundir-me entre as letras
minha fome
minha única sede.

Deixaram de dançar
e quem se destacava
por sua tremenda humanidade
me fulminou com seu olhar.

Quem é mais cruel?
Poeta
Quem mais selvagem?
Quem morre guerreando
por um pedaço de pão
ou quem não morre nunca.
Quem produzirá o extermínio
poeta.
Minhas armas ou teus versos.

E agora poeta deixa a pluma
sai a andar e pensa.
Sentado sobre minha cama
escrevendo
digo ao selvagem que
não quero ir-me de minha peça
e que sempre soube que pensar
não era necessário e que desejo
é a última vez que digo
seguir escrevendo este poema.

Antes de continuar me detenho
na inteligência do selvagem:
fala bem e enquanto fala
deixa escapar entre as palavras
o alento
para que tudo soe vital
dilacerante.

Eu sou o homem
grita a besta encadeada
e tu poeta és o homem?
Escrever para quem
onde os amigos
e onde os inimigos.

Diz-me poeta
teu canto
necessita do futuro
para ser?
Esse poema que escreves
contra tudo
a quem servirá.

Vamos ver poeta um verso
que me diga agora mesmo
o que é o homem?

Sentado sobre minha cama escrevendo
me dou conta
que a inteligência do selvagem
terminará queimando
todos meus papéis escritos
nessa fogueira
que foram construindo
a meu redor
suas palavras.

Deixo de escrever
olho fixamente seus olhos
e murmuro suas próprias palavras
num só verso um homem
num só verso um homem
e me decido a escrever esse verso.

Sustento com minha mirada
a mirada do selvagem
e com rápidos movimentos
tomo a metralhadora
e disparo várias rajadas
sobre o corpo do selvagem
que com os olhos desorbitados
pelo assombro
cai
para morrer e desaparecer.

Sentado sobre minha cama escrevo agora
com a segurança
de quem chegou ao fim:

Um poeta assassinou seu homem
para escrever este poema
e isso
é um homem.