quinta-feira, 2 de abril de 2009

Psicoanálise & Direito

(Idowu, de Esther Mahalangu)

O sujeito esquerdo
Parte I


A palavra sujeito tem a particularidade de ser semelhante em diferentes idiomas: em alemão, Subjekt; em francês, Sujet; em inglês, Subject; Sujeito em português e Sujeto em castellano.
Expressão corrente na Psicología, na Filosofía e na Lógica, é empregada para designar o indivíduo enquanto observador de outros e observado por outros, bem como é nome de uma instância com a qual se relaciona um predicado ou um atributo.
Na Filosofia, desde René Descartes (1596-1650) e Kant (1724-1804) até Husserl (1859-1938), o sujeito é definido como o homem mesmo enquanto fundamento de seus próprios pensamentos e funções. É então a essência da subjetividade humana no que ela tem de universal e singular. Nessa acepção, própria da Filosofía Ocidental, o sujeito é o do conhecimento, o do direito ou da consciência, seja essa empírica, transcendental ou fenomênica.

Diversos textos jurídicos que invocam, em seu favor, uma referência à linguagem ou à lei conduzem à concepção do sujeito da intenção, da vontade, da autonomia ou da responsabilidade.

O conceito de sujeito de direito nasce da Filosofia dos Direitos Humanos, de cunho liberal, pensadora de indivíduos livres e iguais do ponto de vista jurídico.

Esse sujeito do qual fala o Direito é aquele posto em função pelos textos jurídicos, ou seja, de algum modo formatado por esse discurso, definindo-se por uma interpretação que obedece a cânones formais precisos, ou seja, o sujeito de direito é definido pelos fatos jurídicos[1].

Pode-se pensar, no dizer de Franck Chaumon, em três tipos de sujeitos produzidos por esses textos, notadamente, de Direito Civil:

a) o sujeito proprietário e o sujeito não-proprietário (o do Direito das Coisas), aquele que se define pela capacidade de possuir, não sendo invocado se não a título de uma possessão particular ou pela inexistência dessa possessão;

“O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” (art. 1.228 do Código Civil Brasileiro de 2002)


b) o sujeito autor de um ato jurídico (o do Direito Obrigacional ), aquele que detém a capacidade para realizar determinado ato/ato-fato jurídico ou que não detém essa capacidade;

“A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei.” (Ibid. art. 104)


c) o sujeito responsável (nas matérias relativas à Responsabilidade Civil, subjetiva ou objetiva); aquele a quem se pode imputar a realização de certos fatos jurídicos, notadamente ilícitos, com algumas exceções.

“Aquele que por ação ou omissão dolosa voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” (Ibid. art. 186)

Encontrando-se sujeitado ao discurso jurídico, o sujeito de direito aparece sob a condição de vir a ocupar o lugar que se lhe preparou, pois, o direito material ou processual o reconhece tão-somente a partir dos lugares para ele dispostos (autor, réu, assistente, oponente, terceiro, chamado ao processo, denunciante ou denunciado da lide, litisconsorte, recorrente, recorrido, apelante, apelado, parte legítima, parte ilegítima ...).

Contudo, a experiência vivida nos fóruns demonstra que no “ O Processo”, os personagens são mais que [2]Baratas às quais se aponta (e apronta) um lugar.

Há uma analogia possível entre o sujeito de direito e o sujeito, digamos, freudiano.

O sujeito freudiano resulta de uma inscrição, de uma escritura que precede sua estada no mundo. A citada escritura se constitui das leis de linguagem, da vedação ao incesto e ao parri-filicídio. Isso tudo se apresenta como uma teia – teia de significantes - (aqui a Barata de Kafka já se parece mais como uma aranha de algum caminho visitado por Proust no seu largo Swan) ou, como nas palavras de Chaumon, isso tudo se apresenta como uma arquitetura formal na qual o sujeito pode vir a ocupar um lugar, um lugar dado.

Todavia, a analogia, mesmo como possibilidade, é falsa visto o sujeito da Psicoanálise não se apreender enquanto tal se não pelos efeitos da palavra de “um” dirigida a “outro”, no processo de transferência[3].

Não existe um texto e um sujeito que o realize, como numa espécie de oráculo. Não há um texto, na Psicoanálise e, a seguir, um sujeito que se ponha em função dele, o que há é um saber que se deduz aprés-coup.

A Psiconálise surpreende o sujeito na retrospectiva de suas manisfestações, ao contrário, pois, da Filosofia do Direito, que inventa um sujeito e lhe atribui atos, fatos ou obrigações. Para esse último campo do conhecimento, o sujeito é lá onde se sabe que ele é, contudo, para a Psicoanálise, o sujeito se encontra ou se oculta onde não se sabe.

O sujeito que interessa à Psicoanálise é aquele que se deduz de uma divisão da palavra, “eso habla” diz Chaumon, e por falar, agora, respectivamente, poderá se deduzir que ali, nessa palavra, havia um sujeito.

A associação livre, enunciada por Freud como a técnica da novel Ciência, consistindo em dizer na sessão “tudo o que se passa pela cabeça”, aporta a prova da divisão operada entre o que se diz e o que se queria dizer.

O sujeito da Psicoanálise surge de um tropeço nas palavras. Nesse tropeço distingue-se entre o sujeito do enunciado (aquele que intenta significar) e o sujeito da enunciação (aquele que se deduz do que é dito).

Esse sujeito acreditava em reinar, em dominar sua vida e suas eleições; todavia, dá-se conta que outra coisa regula seu percurso, um desejo-inconsciente-de onde se pode deduzi-lo. O sujeito não se fala, Isso fala dele, diz Lacan.

[1] Fatos jurídicos segundo a maior parte dos autores seguidores da doutrina francesa são os acontecimentos em virtude dos quais começam, se modificam ou se extinguem as relações jurídicas. Do ponto de vista ontológico, o fato jurídico apresenta dois elementos constituintes: um fato, que é a causa atuante sobre o direito subjetivo, criando, modificando ou extinguindo esse direito e uma declaração da ordem jurídica, que atribui efeito ao fato (eventualidade +preceito legal). Para Pontes de Miranda fato jurídico é o fato ou complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica.
[2] Trata-se de uma referência ao “O Processo” de Kafka, que talvez possa ser explorada.
[3] A cura analítica supõe um analista que se comprometa, quer dizer, que se preste a este enlace amoroso que Freud chamou de transferência.


Eliane Marques

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