domingo, 31 de maio de 2009

(Portinari, Retirantes)


poesia cero

GIRONDO
emputarrado de solidão
apodrece ilegal
um resto de menino

a esticar os ossos
que brotam
de seus dedos cortados

cova malade
hambrienta a luxo
que doura

a mirada
metida nos versos
da morte

não te aproxime!

nada há de ofélia
na brisa que atravessa
a farsa dos cemitérios
Eliane Marques

sessão desvelada

ESPELHO BRANCO
Campainha.
- Entre
- Hoje, sou capaz de dormir no divã...
- Sim? … Também podes falar dos sonhos
- Ah, sim, tive um sonho ... e acordei no meio da noite com muita angústia... estava no meio de uma cidade que não conhecia, dirigia um carro... e me sentia segura... eu nunca dirigi... sempre me dá medo, não tenho curiosidade de dirigir...
- Curiosidade de quê?
- Ah... me assustei com o que disseste... não sei, curiosidade de ... não sei... curiosidade de ser independente?
- Podes seguir associando, é possível mais de uma resposta.
- Não gosto de gente curiosa, me dá medo, na faculdade tenho uma colega que é insuportável, é curiosa sobre tudo, lhe dizem que leia o capítulo 1 e 3 de algum livro, e ela lê também o 2 e o 4, parece que sempre quer saber mais...
- e tu, queres saber mais
- …
- …
- parece que estou numa encruzilhada… às vezes não quero saber mais de nada... estudo, quero me formar em um ano, mas não sei se é porque quero saber das coisas, ou para ser normal...
- normal?
- Sim, na minha família todos são universitários, é o normal... ser médica como meu pai e minha mãe... bem, meu irmão não é médico, mas estuda Letras... é o mais divertido da família... quem sabe se eu houvesse escolhido Letras fosse mais curiosa...
- medicina ou letras… aí se fecham as vias de tua curiosidade?
- Parece que sim… quando menina queria ser bailarina e estudei ballet até os 17 anos, mas, ao terminar o colégio, estava me esperando a faculdade... e agora me falta um ano para me formar em Medicina... tudo o que disse me dá vontade de chorar...
- …
- Minha mãe é encantada pela vida de médica, meu pai não poderia ter sido outra coisa, até quando está em casa de jeans, fazendo um churrasco, se vê o avental branco, as mãos de cirurgião... às vezes o cumprimento pela manhã e ele fica me olhando e me diz: viste essa bolinha? ... que bolinha??? lhe digo, já incomodada, e ele, que se dá conta, insiste em me dizer... não, não, nada, vamos ver como evolui, como evoluem as coisas... e assim, muitas vezes, são nossas conversações... que curiosidade posso ter... essa??? Ver como uma bolinha evolui, como evoluem as coisas, como eu evoluo?
- ...
- ...
- Nico é o mais divertido da família, passa lendo novelas todos os dias... leste O Perseguidor de Cortázar??? Não Nico, lhe digo, atormentada com os livros de pediatria...
- atormentada com pediatria?
- Não sei o que mais dizer... posso ir embora?
- ... Se foi Maria Rosa... não sei se me pergunto o que ela deveria se perguntar…


Marcela Villavella

sábado, 30 de maio de 2009

poesia cero

TERRA MINADA
Campo de sangue

moldura

túnel


Fome cadente

que figura entre amantes

do almanaque da guerra


Bumerangue de ódio

arsenal de antiga

vespa


Entre as flores

um espartilho de vísceras

se perde
Barbara Corsetti

+ psicoanálise

LENDO FREUD E LACAN


A interpretação não tem que ser uma verdade, uma verdade pouparia o circuito das associações. A interpretação tem que ser uma verossimilhança, um pode ser, um talvez pudesse ser, um “se você quiser fazer um esforço poderia transformar esta frase em outra”: Nunca é uma verdade, sempre é uma verossimilhança. Mas o que é a verdade? Produção. Mas o que é produção? Seria construção, mas desconstrução também. As duas, as duas são instantes de verdade, quando faço uma construção e quando com a seguinte construção desconstruo a construção anterior.
Você não poderá ingressar no mundo da mulher até que não conceba dentro das relações que tem com o mundo, além das que tem com você mesmo e com sua mãe, a relação com seu pai. Então o mundo das mulheres não só será o mundo de si mesmo, senão que o mundo mesmo da mulher se abre atravessando o corpo da mãe, no discurso do paciente.

(de Miguel Oscar Menassa. IN: FREUD E LACAN – FALADOS – 1. Grupo Cero, Porto Alegre, 2007, colaboração da psicoanalista Lúcia Bins Ely)

na cadeira do sonho

(Debret)

ONDE MERENDA A MORTE

Madeira de olhos úmidos e meninos escondidos entre as frestas nas noites de chuva, deixando-se escapar apenas ao amanhecer, para se alimentarem do café com farinha e da terra do chão batido pelas tamancas da dona da casa. Habitavam esse casebre mutilado pela obstinação da vida, além deles, as várias Carachas daquela fronteira de guerras inacabadas. Os maridos também eram vários, nenhum oficial, de papel passado, como diriam as vizinhas que buscavam saber dos amores jamais sofridos. Eles, por sua vez (os amores), pouco se importavam com a pluralidade da palavra para a mulher de pele de escamas de peixe, lenço florido sobre os cabelos quase inexistentes e um dente para mastigar o guisado ralo dos domingos, uma mulher grande e trabalhadeira que gostava de limpar a casa sexta à noite para namorar, em cada sábado, o marido correspondente, geralmente um marceneiro, que fingia calar as patas da cama queixosa da solidão dos abismos; ou um açougueiro, responsável pelos ossos que matavam a dor ingênua das crianças; ou um pedreiro, especialista em pendurar pregos nos dedos da amante como se fossem pequenos anéis de prata.
A Caracha trabalhava numa “casa de família”. Era criada de 1 mulher, 1 marido, 3 filhos homens e 1 cachorro Malcriado. Arrumava, a cada dia que deus tirava do mundo, 4 camas de casal, lavava milhares de roupas, varria o pátio dos fundos e o da frente, planchava cuecas de todas as cores, inteiras ou furadas, cozinhava todas as manhãs e todas as tardes juntava da sala e enterrava na areia o coco do Malcriado.
A Mulher Grande e Trabalhadeira era incapaz de recolher, guardar e levar à sua morada, “que não era de família”, qualquer dinheiro encontrado e que não fosse seu. Às quartas-feiras, até a linha da desconfiança estragar a bondade da patroa, retirava do armário um quilo de arroz e o colocava na frente da Casa para que, no horário certo, os lixeiros o levassem. Esse grão magro, branquelo e sem gosto, alimentava os filhos dela até a próxima quarta-feira, quando voltavam a se fantasiar da profissão que tinha por lema, escrito com grandes letras no caminhão que vomitava sacolas de dejetos pelas calçadas, “povo limpo, cidade educada”.
Uma vez por ano havia churrasco na casa da Doméstica. Mas o evento durou até os idos de 1983, quando, presumindo que algo faltara na panela, a madame revistou, por acaso, a bolsa da Caracha e encontrou o pedaço de carne que seria do churrasco. A mulher de “família”, e não dada a escândalos, e nem a “meter a boca” como sói as negras e pobres costumam fazer, devolveu delicadamente a jóia (de carne) ao seu lugar e, claro, nada disse à criminosa. Essa má entendedora para a qual nenhuma palavra fora bastante nunca mais voltou ao emprego ou fez churrasco anual, por que boa era a carne que Dona Aninha comprava.
Volta e meia confundiam a Caracha com um homem chamado Gaspar. Certa feita, vagabundos que bebiam num bar de esquina resolveram apostar um litro de cachaça para quem adivinhasse a charada: aquilo que descia do ônibus “Wilson” e seguia em direção à Rua Brasília era o Gaspar ou a Caracha? Até hoje ninguém sabe a resposta, mas recebeu o litro de pinga o sujeito que optou pela lógica da masculinidade: “Só podia ser a Caracha, pois, ainda que de vez em quando usasse tamanco, o Gaspar jamais se enfeitaria com um lenço vermelho no cabelo e nem pintaria as unhas de rosa”.
No período anterior ao carnaval (quaresma, diria algum padre) a Mulher Grande e Trabalhadeira aproveitava à estranha semelhança com Gaspar e ocupava seu lugar nas obras de construção civil da fronteira. Enquanto o verdadeiro rei mago dormia, a madalena recebia o dinheiro para pagar à costureira sua roupa de foliã. O Gaspar bem que ficara desconfiado da fama de bicha que lhe passara a pesar sobre as tamancas, mas nunca quisera saber o motivo, afinal a injustiça lhe permitira mais autenticidade na fantasia durante o desfile de seu bloco.
A verdade é que Caracha tinha um amante fiel e pai de seus filhos, ou, pelo menos, de alguns. Chamava-se Duque, um homem muito bom e muito bêbado, que sofria a perda de cada filho como o descolar de 1 unha do dedo do pé quando se usa um sapato apertado ou quando ela é pisada por um salto de mulher com raiva.
Embora desconhecesse remédio para a vida, o Duque dispunha de artimanha contra a morte – colocava o pequeno falecido num caixãozinho de madeira e, com ele debaixo do braço, saía para beber em qualquer boteco que estivesse aberto no Bairro da Carolina. O ritual ficava melhor quando encontrava a mãe da criança que, surpreendida por ver o desamparado naquele ataúde, já tão tarde e com tanta fome, saía pelo descampado em busca da merenda do dia. Jamais a encontrava e sempre voltava para esse deslugar de fronteira e sem paz com as mãos ensopadas de sangue.

Eliane Marques

titinhas


quarta-feira, 27 de maio de 2009

notícia



Nos próximos dias 05 e 06 de junho de 2009, o Grupo Cero, por um de seus integrantes, a psicoanalista Lúcia Bins Ely, participará do Curso de Pós-Graduação “FILOSOFIA E PSICANÁLISE”, na UNOCHAPECÓ (Universidade Comunitária Regional de Chapecó), no Estado vizinho de Santa Catarina.
Lúcia será a professora convidada da disciplina “Fundamentos da Psicanálise”, cuja professora titular é a psicanalista da APPOA, Gardênia Medeiros. Dentre os temas a serem desenvolvidos estão: Produção do Inconsciente, Conceito de Ruptura, Conceito de Trabalho, Leitura como produção e a Interpretação dos Sonhos.

terça-feira, 26 de maio de 2009


verso b



“olho muito tempo o corpo de um poema”

(Ana Cristina Cesar)

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

(Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, Rio de Janeiro, Objetiva 2001)

frase feita



Há algo no êxito que não se digere bem. No êxito está o fracasso de já haver vivido, o que não se digere bem.

(Miguel Oscar Menassa, aforismo 721, do livro Aforismos Y Decires [1958-2008], Editorial Grupo Cero)

domingo, 24 de maio de 2009

notícia


(supervisora de benefícios dormindo, de Lucian Freud )

poema de bolsa

Do ar, Rio da Prata

Barro unha oriental
Abismo estrela de ilhas
Negro rastro de barcos
Arcos de fundo viver
Tesouro leito sem causa
Mais que te mentir
Voo

Rio da prata
Frío fio de uma nuvem
tempo do relógio que não passa
e daqui a água tranquila
e o desejo de chegar
e o medo do depois
da indecisão,
da fissura de teus olhos fechados
de teus lábios serrados
deste jardim aquático de onde te vejo.

Hoje é história antiga todas as histórias
São látegos de gelo todos os minutos que estou longe de ti
E cristal o passo dos dias
E metal o calendário
E já não está aquí
Nem comigo
E já não há base do céu
E já voo perto de tua mansão
Da dimensão que tomaste
De teu dúplex aéreo
gramado e nome
Hoje levo esta tiara
E os anéis da rainha russa
Levo as mãos carregadas de presentes
E volto a cada tanto
a este céu
a esta eternidade.

Os caminhos do adeus
Estão fechados.
Marcela Villavella

sessão desvelada

CABEÇA A PRÊMIO
Campainha.
- Olá, entre…
- Que calor! Insuportável, não te cumprimento por que estou suada… uff… que confusa esta rua para estacionar... quantas obras estão fazendo ao mesmo tempo... desde que o supermercado foi instalado nas redondezas tudo ficou complicado, aqui está um pouco frio, podes diminuir o ar condicionado... não faz nenhum ruído, me dei conta que estava ligado pelo frio terrível que faz aqui dentro... é silencioso eh!
- Podes deitar, eu te escuto...
- Não sei o que dizer...
- Mas estavas dizendo muitas coisas... podes seguir falando...
- ... agora não sei o que dizer...
- Acreditou que enquanto caminhava eu não te escutavas?? Pensas que apenas te escuto quando te deitas?
- Ah, pode ser... sempre me incomoda quando me dizes Te escuto... me dá medo, não sei... por que me dizes te escuto... como se me ameaçasse de algo...
- Apenas te escuto…
- e para que me dizes... se eu te pago para isso... não sei... hoje não me suporto nem eu... ontem meu marido me disse que não me aguenta mais... que falo sem parar... que não o escuto... não sei o que tem que ver ... mas ele vem do trabalho e eu quero lhe dizer tudo o que pensei durante o dia ... ele liga a TV e diz que me escuta, porém está olhando futebol todo o tempo, e não fala nada, o que quer que escute?? ... no sábado, Valéria veio jantar conosco, e ele ria, conversava, parecia um tipo interessante, contou coisas das viagens de trabalho que a mim nunca conta... nem me olha... quando viaja me traz sempre o mesmo perfume do free shop, quer dizer que nem se lembra de mim quando viaja... chega e enquanto espera a mala, compra a mesmo perfume de sempre... Valéria o escutava, me olhava como dizendo ... como Luís é interessante, que interessante que é teu marido, e eu a única coisa que pensava era “esse não é meu marido”...
- esse não era teu marido.
- ... às vezes, quando o vejo assim, volto a lhe desejar.
- Assim?
- Assim, como um homem que não é meu marido... quando ao mesmo tempo me dá medo dizê-lo... e se não me quer mais?
- Quiçá a que tem medo de não o querer mais como marido é você?
- Vê? Isso é que digo, às vezes me sinto ameaçada por como me escutas...
- ......
- … Não me dói mais a cabeça, assim que não irei mais ao homeopata ... havia te dito??? não me dói mais a cabeça ... como pode ser??
- Quiçá não te dói por que a está perdendo...
- Sim, sim ... ui que medo, hahahahaha
- Continuamos na quarta?
- Dale.

Marcela Villavella


quinta-feira, 21 de maio de 2009

+ psicoanálise



“... os homens se movimentam numa finitude sem limites, ignoram onde estão, como aparecem e desaparecem. Assim o inconsciente é produção desejante que flui e se fecha continuamente, alimentando sem cessar a função poética, nutrindo-se dela. Porém, dessa perspectiva, uma coisa é certa: já não serve como limitação de cotidianas neuroses, senão como criação vital e escritural irredutíveis. Nela a morte é o máximo sorriso, quer dizer, a metáfora obtida de uma verdadeira troca de pele.

(Juan Carlos de Brasi, “Hacia la funcion poética, Crítica del Dualismo”, fragmento, do livro “actas – segundo congreso internacional de poesía y psicoanalisis)

+ poesia


TAMPOCO

Nadie lo sabe
nadie

ni el rio
ni la calle
ni el tiempo

ni el espía
ni el poder
ni el mendigo

ni el juez
ni el labriego
ni el papa

nadie lo sabe
nadie

yo tampoco

(de Mario Benedetti IN: El mundo que respiro. Sudamericana, Buenos Aires, 2002.)



Noite 428

Escrever até que as palavras se combinem em poesia é o mais difícil do ofício de escritor – não poder escrever para escrever.
Se me proponho todos os dias, conseguirei arrancar alguma melodia, isso é uma verdadeira máquina.

(Las 2001 noches, poesía, aforismos, frescores y 393 noches de repuesto (1976 - 1997), Miguel Oscar Menassa)



confábulas

O sr. Keuner e a maré

O sr. Keuner passava por um vale, quando notou de repente que seus pés estavam na água. Então percebeu que seu vale era na realidade um braço de mar, e que se aproximava o momento da maré alta. Imediatamente parou, buscando com os olhos uma canoa, e enquanto desejava uma canoa ficou parado. Mas não aparecendo nenhuma canoa, ele abandonou essa esperança e esperou que a água não subisse mais. Somente quando a água lhe atingia o queixo ele abandonou também essa esperança e nadou. Tinha se dado conta que ele mesmo era uma canoa.

(Histórias do sr. Keuner, Bertold Brecht, Editora 34, 2006)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

(Degas)



quarta-com-cortázar

PARA UM GENERAL

Região de mãos sujas de pincéis sem pêlo
de meninos boquiabertos de escovas de dentes

Zona onde o rato se enobrece
e há bandeiras inúmeras
e cantam hinos
e alguém prende em você, seu filho-da-puta,
uma medalha no peito

E você apodrece do mesmo jeito.

(do livro Divertimento, de Julio Cortazar, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003)

recortes de psicoanálise



Se deixo de perder energia e tempo em que me reconheçam, me farei rico e, então, poderei pagar para que me reconheçam.

(aforismo 1216, do livro Aforismos y Decires [1958-2008], de Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero-Madrid)

terça-feira, 19 de maio de 2009

frase feita

E se nos perguntarmos agora quem teme à psicoanálise, poderíamos responder:
em geral, todos temem.

(Miguel Oscar Menassa)

versob

Una mujer desnuda y en lo oscuro

(Mario Benedetti)



Una mujer desnuda y en lo oscuro
tiene una claridad que nos alumbra
de modo que si ocurre un desconsuelo
un apagón o una noche sin luna
es conveniente y hasta imprescindible
tener a mano una mujer desnuda.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
genera un resplandor que da confianza
entonces dominguea el almanaque
vibran en su rincón las telarañas
y los ojos felices y felinos
miran y de mirar nunca se cansan.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
es una vocación para las manos
para los labios es casi un destino
y para el corazón un despilfarro
una mujer desnuda es un enigma
y siempre es una fiesta descifrarlo.

Una mujer desnuda y en lo oscuro
genera una luz propia y nos enciende
el cielo raso se convierte en cielo
y es una gloria no ser inocente
una mujer querida o vislumbrada
desbarata por una vez la muerte.


MARIO BENEDETTI, POETA IMORTAL


Mario Benedetti nasceu no Uruguai, em 14 de setembro de 1920 e faleceu no domingo passado, 17 de maio de 2009. Poeta, escritor, ensaísta e roteirista de cinema, integrou a Geração de 1945. Uma de suas obras mais conhecidas é “Poemas de la oficina”, de 1956. Nenhuma homenagem é suficiente para esse grande homem que fez da vida um ofício poético. Mas como a própria poesia, sempre é possível a tentativa. Por isso, no versob de hoje, um poema de Benedetti.
Versob

domingo, 17 de maio de 2009

poema de bolsa

MOINHO ALADO

Velozes sonhos
Contações de dor
Espíritos alados

Ronda o medo

Como não chegar à vergonha
Amargura de beleza
Que inunda a doença da sede?

Essa espécie de açúcar vadio

Medida governada
pela loucura
que pulsa nos olhos

efeito de máquina.


(Barbara Corsetti)

+ psicoanálise


dizer hipocondríaco

parte final

Daniel chega à consulta pela primeira vez aos 45 anos, depois de anos em visitas a consultórios, centros médicos de alta e múltipla especialização, laboratórios de análises clínicas e etc. Diz: “Faz vários dias que sinto uma dor aguda nas têmporas como uma alfinetada aqui, vê? E o médico se nega a fazer o encefalograma que, com certeza, permitirá que eu saiba se está tudo bem em minha cabeça... e se é algo repentino e morro em segundos sem me dar conta? E se estou gravemente doente e trabalho como se nada acontecesse?... Além disso, faz uma semana que a mulher de meu colega de trabalho estava bem e de repente caiu no meio da rua e morreu… tinha um tumor cerebral e ninguém sabia... pode ocorrer... e o quê custa ao médico fazer o encefalograma que vai me tranquilizar”.
O hipocondríaco se sente doente, e se mostra como um obsceno falador, um impudico que relata suas suspeitas e seus temores esperando que uma palavra o acalme, que tenha consistência semelhante a seus medos orgânicos. Descreve cuidadosamente o início e o final de um mal-estar como se em cada frase estivesse por descobrir o segredo de sua vida ou as proximidades da morte.
Ele pede garantias ao médico ou de uma saúde estável ou de uma morte segura por uma terrível doença. Não suporta nem suas contingências em ser, seus próprios enigmas enquanto sexual e mortal. Seu discurso é pobre, estreito, sempre limitado ao corporal, como se suas palavras fossem obstinadas caçadoras de seu próprio pedaço de carne. Detém o mundo para medir o pulso ou escutar algum ruído em seu estômago, ou para verificar se a alfinetada nas têmporas chegará mais ou menos na mesma hora que no dia anterior.
Ele está todo o tempo tratando de pesquisar os conteúdos impossíveis que o afligem. Sua maneira de pontuar fica sempre agarrada numa zona desconhecida do corpo. Quando se trata do hipocondríaco, a pontuação é sempre suspensiva.
Para ele, as variações de uma vida resultam insuportáveis, tudo se abriga num órgão. Prefere pensar que a morte é o incerto, o variável, no lugar de aceitar que é a vida o impensado que teme e, que da morte nada se sabe.
Não aceita sua mortalidade, por isso padece, inclusive, de uma alteração relativa ao tempo. Resulta-lhe insuportável aceitar que no futuro a morte está esperando. Ser mortal lhe parece uma má jogada do destino.

O hipocondríaco rechaça sua mortalidade e faz consistente e letal o futuro.
Ele não aceita que morrerá. Vive crendo que o futuro é um assassino em série.

Até a próxima!!!

Marcela Villavella

sexta-feira, 15 de maio de 2009

poesia cero


Quando sou muitos
alguém se perde

e todos sofrem a ferida
que cava na clareira do carvão
um estreito

entre o fogo e a areia
corre o polvo dos pés.

Sangro no mar
a dor da queima

e um algodão doce
voa no céu do parque

(Lúcia Bins Ely)


(Tarsila do Amaral- Antropofagia)

+ psicoanálise

... por que tem desejo aquele que não sabe, aquele que não tem, aquele que não duvida, como um idiota condenado à morte o desejo é que o tem.
Versob

traduceiro

As mulheres faziam apenas isso, quer dizer, nada, falando muito. Cada uma cuidava de um ou dois machos que havia gerado, de quem trocava as fraldas, a quem dava o peito ou a mamadeira para que crescesse, tornasse-se um herói e morresse aos vinte anos, não na Terra Santa, mas por ela. Foi o que elas me contaram.
Estávamos no campo de Baqa no fim de 1970.

(Um cativo apaixonado, Jean Genet, tradução Cláudia Fares, Arx, 2003)

era uma vez...


1ª NOITE DAS ESPANTOSAS HISTÓRIAS DAS MIL E UMA NOITES

Disse Sharazad: conta-se ó rei venturoso, de parecer bem orientado, que certo mercador vivia em próspera condição, com abundantes cabedais, dadivoso, proprietário de escravos e servos, de muitas mulheres e filhos; em muitas terras ele investira, fazendo empréstimos ou contraindo dívidas. Em dada manhã, ele viajou para um desses países: montou um de seus animais, no qual pendurara um alforje com bolinhos e tâmaras que lhe serviam como farnel, e partiu em viagem por dias e noites, e Deus já escrevera que ele chegaria bem e incólume à terra para onde rumava; resolveu ali seus negócios, ó rei venturoso, e retomou o caminho de volta para sua terra e seus parentes. Viajou por três dias; no quarto, como fizesse muito calor e aquele caminho inóspito e desértico fervesse, e tendo avistado um oásis adiante, correu até lá a fim de se refrescar em suas sombras. Dirigiu-se para o pé de uma nogueira a cujo lado havia uma fonte de água corrente e ali se sentou, antes amarrando a montaria e pegando o alforje, do qual retirou o farnel: bolinhos e um pouco de tâmaras. Pôs-se a comer as tâmaras, jogando os caroços à direita e à esquerda, até que se saciou. Em seguida levantou-se, fez abluções e rezou. Quando terminou os últimos gestos da prece, antes que ele se desse conta, aproximara-se um velho gênio cujos pés estavam na terra e cuja cabeça tocava as nuvens, empunhando uma espada desembainhada. O gênio se achegou, parou diante dele e disse: “Levante-se para que eu o mate com essa espada, do mesmo modo como você matou meu filho!”, e deu uns gritos com ele. Ao ver o gênio e ouvir-lhe as palavras, o mercador ficou atemorizado e, invadido pelo pânico, disse: “E por qual crime vai me matar, meu senhor?”. O gênio respondeu: “Pelo crime de ter matado o meu filho”. O mercador perguntou: “E quem matou o seu filho?”. Respondeu o gênio: “Você matou o meu filho”. Perguntou o mercador: “Por Deus que eu não matei o seu filho! Quando e como isso se deu?” O gênio respondeu: “Não foi você que estava aqui sentado, e que tirou tâmaras da mochila, pondo-se a comê-las e a jogar os caroços à direita e à esquerda?”. O mercador respondeu: “Sim, eu fiz isso”. O gênio disse: “Foi assim que você matou o meu filho, pois, quando começou a jogar os caroços à direita e à esquerda, meu filho começara logo antes a caminhar por aqui, e então um caroço o atingiu e matou”. Agora, me é absolutamente imperioso matar você”. O mercador disse: “Não faça isso, meu senhor!”. Respondeu o gênio: “É imperioso que eu o mate, assim como você matou o meu filho. A morte se paga com a morte.” O mercador disse; “A Deus pertencemos e a ele retornaremos; não há poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso. Se eu de fato o matei, não foi senão por equívoco de minha parte. Eu lhe peço que me perdoe”. O gênio respondeu: “Por Deus que é absolutamente imperioso matá-lo, do mesmo modo que você matou meu filho”, e, puxando-o, atirou-o ao chão e ergueu a espada para golpeá-lo. O mercador chorou , lamentou-se por seus familiares, esposa e filhos. Enquanto a espada estava erguida, o mercador chorou até molhar as roupas e disse: “Não há poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso, e recitou os seguintes versos:

continua na próxima sexta-feira


(Livro das mil e uma noites, volume I: ramo sírio, tradução do árabe Mamede Mustafa Jarouche, São Paulo, Globo, 2005)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

poesia cero

grades elefantes
cortam carnes
com gilete nova

(Barbara Corsetti)

notícia

(marie laurencin)

Projeto: AMOR E CRIMINALIDADE

Título: “ROUPA SUJA SE LAVA EM CASA?


JUSTIFICATIVA

O Grupo Cero, em parceria com o Coletivo Feminino Plural e com a Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, considerado o Dia Internacional da Saúde da Mulher (28 de maio), promove Mesa Redonda com o fim de, a partir do intercâmbio cultural e científico entre essas instituições, incentivar o debate no Município de Porto Alegre, sobre as interfaces do denominado maltrato familiar ou violência de gênero e o tipo de amor que se desenvolve no seio da família.

OBJETIVOS

1. promover espaços de “falação” acerca de questões relevantes para o fortalecimento do poder de decisão e de autonomia da mulher;
2. incentivar a fala e a escuta “das” e “entre” as mulheres;
3. divulgar a poesia escrita pelas mulheres.

METODOLOGIA

1º momento: FILME (20min): exibição do filme Canto de Cicatriz, documentário dirigido por Laís Chaffe sobre a violência sexual contra meninas, produzido pelo Coletivo Feminino Plural no ano de 2005 (Prêmio Direitos Humanos no RS, Galgo Alado no XIV Gramado Cine Vídeo - melhor vídeo independente brasileiro e melhor vídeo social, dentre outros prêmios).

2° momento (60 min): MESA REDONDA

A Mesa Redonda contará com a participação da poeta e psicoanalista Barbara Corsetti, que abordará o tema desde a Psicoanálise produzida no Grupo Cero, bem como da cientista política Telia Negrão, Secretária Executiva da Rede Feminista de Saúde, que fará abordagem de uma perspectiva sócio-crítica, e de representante do Coletivo Feminino Plural, que tratará da matéria a partir do trabalho produzido na respectiva organização

3° momento: ROUPA SUJA NA POESIA (30 minutos), sarau com leitura de poemas escritos por mulheres.


Quando: 28 de maio de 2009, quinta-feira
Horário: 19h
Duração: 2 horas
Local: Auditório do SINPRO, João Pessoa 919, térreo
Entrada Gratuita

PROMOVE: Grupo Cero Brasil

PARCEIROS: Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos

Coletivo Feminino Plural

Apoio: SINPRO/RS

Contato: 3333-4394

+ psicoanálise

LENDO FREUD E LACAN

O cristianismo é, em certo sentido, um verdadeiro avanço feminista, pois na religião judia, da qual ele provém, a mulher não pode falar diretamente com Deus. Quem fala diretamente com Deus é apenas o homem.
Assim, essa religião dá um passo fundamental por que possibilita que a mulher fale diretamente com Deus pelo fato de poder ser mãe. A partir daí, a psicoanálise diz que metade da mulher ingressa na história do homem.
A dialética que a mulher não suporta, não entende e não pode acomodar, é a maternidade – sexo. Essa dialética que a completa.
Para o cristianismo a mulher será humana se for mãe. O problema ocorre, então, quando a mulher começa a produzir sua palavra a respeito do que lhe acontece e, desgraçada ou afortunadamente, o pontapé inicial neste processo de liberação é dado pela psicoanálise, por que é a primeira vez na história da mulher ocidental que, a partir de um aparelho teórico-prático, político-ideológico – movimento psicoanalítico – se pede a ela, se exige dela que para ser tem que falar e escrever. Antes da psicoanálise, isso estava proibido para a mulher.
Ela nunca havia recebido essa ordem.

(de Miguel Oscar Menassa. inN: FREUD E LACAN – FALADOS – 1. Grupo Cero, Porto Alegre, 2007, colaboração da psicoanalista Lúcia Bins Ely)

diários

BRECHT
12 DE NOVEMBRO DE 1921

É uma cidade cinzenta, uma boa cidade, eu perambulo. Como faz frio, aguente! Almoço na casa de Warschauer, à tardinha pão com linguiça. Faço baladas. Estou só. Convido He para o teatro, na primeira vez ela não pode, na segunda recusa ao telefone. As descortesias me afetam mais que as vulgaridades, não telefono mais. Em primeiro lugar os sentimentos dela devem ter se esgotados, mal conservados que estavam; em segundo lugar, ela caiu na aritmética da baixeza e em terceiro lugar a qualidade dela é de segunda. (Há pouco tempo ela me disse: “Amei Mast, XY e Gert Ilo” – e depois a mim, claro. E está sempre atrás de alguém!) Mas parece forte e saudável, melhor do que estava comigo, isso é o importante.

(Diários de Brecht, Diários de 1920 a 1922: Anotações Autobiográficas de 1920 a 1954Trabalho, L&PM Editores, Porto Alegre)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

poesia cero

quero saber das cercanias
quanto
pelo quilo de pão

quanto
pelas laranjas
e pelos vestidos de óleos
de páramo e mau calor

e quanto
pela tristeza
das mesas atiradas
num rincão

é a hora da solidão
enlouquece
o vagor das estrelas

é a hora do anjo
dentes podres
amam o dulçor das maçãs

até a chegada do riso
aguaceiro do martírio

e quanto senhor
pelo fracasso dos cristais
e seu varredeiro roco

e quanto
pelo feiticeiro
que marca o sinal

e quanto senhor
pelas velhas bicicletas
cuja dor redonda
carrega a cidade
eliane marques

quarta-com-cortázar

SOMETHING ROTTEN IN MY LEFT SHOE

Há bom tempo uma coisa horrível está acontecendo com meu pé esquerdo. Quando ele fica descalço, parece contente e às vezes tem câimbra até os dedos se separarem e então se vê o tapete entre eles, coisa muito estranha. Mas quando estou andando pela rua e menos espero, de repente há uma agitação dentro do sapato, sinto puxões inexplicáveis envolvendo o calcanhar e subindo pela perna, quase ouço os dedos rangendo e montando uns nos outros; volto desesperado para casa (um dia tirei os sapatos num mictório de bar) e quando arranco o sapato e a meia, meus dedos estão cheios de sangue, as unhas arrancadas, a meia em frangalhos, e no fundo do sapato há um cheiro de batalha, de suor, de homens corpo-a-corpo que procuram a própria morte pelo pescoço.

(do livro "Divertimento", de Julio Cortazar, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003)

poesía y psicoanálisis

(Caravaggio)

O mito de Narciso é quebrado e os encontros já não são amorosos se não, melhor, histórico-sociais. O corpo é um grupo, uma alucinação sem precedentes. Não tem medo de crescer, de ser universal, de ser atlético. Não tem medo da noite, não tem medo de que irrompam em sua alma bruscos sentimentos incontíveis. Em geral, o corpo grupal não tem medo de pecar.
E esta espécie de pequeno parêntese é para dizer que me dei conta de que vimos alardeando manejar no novo campo os mais preciosos instrumentos de conhecimento, porém nunca tínhamos dito claramente e isso é o que quero hoje: sem o instrumento grupal não há poesia e psicoanálise, sem a produção de um corpo grupal não há corpo para tanto símbolo, para tanta novidade.

VersoB

terça-feira, 12 de maio de 2009

verso b



O CORPO O LUXO A OBRA

- 22-23 novembro de 1977 –


A estrela voltaica queimando
a minha obra
morosa afina sombriamente cada cara
soldada
ponto a ponto,
sobre as válvulas, sobre
a luz que se abre e se fecha
na carne
lunar, implacável.
Tudo faísca: a fruta
que se apanha, o feixe
vertebral, os orifícios de sangue
entre os poros
da madeira.
Respira,
dói.
Como uma artéria radial,
a atenção que dói de baixo para o alto, as meninges
abertas por fendas luminosas.

Alimentava-se
dos rostos minados pela rede dos nervos
negros e das veias
até à raiz cravada
da voz
- o terrífico
aparelho da fome. Toda a obra.
Dói.
A memória maneja a sua luz, os dedos,
a matéria.
É mais forte assim
queimada no écran onde brilha
o buraco da carne,
os espelhos
fechados
de repente vivos como oceanos sob
os antebraços, as mãos.

Desta cadeira vejo
a marcenaria da árvore.
Os fulcros do ouro, o hausto
do meio da terra.
O som espacial da pedra cai
no fundo do dia,
pulsa
a noite vascular, estendida
como uma toalha.
E dentro dessa noite cheia de ar negro,
os planetas
luzem
como rostos que se aproximam com as fendas
de sangue.

(de Herberto Helder in O CORPO O LUXO A OBRA, fragmento, Iluminuras, São Paulo, 2000)

Diário de um Psicoanalista




10 de julho de 1977


Quando foi necessário crescer e se disciplinar
cresci e coloquei a nostalgia em minha mirada.
A disciplina vem sozinha.

Aprendi a mirar de lado
a provocar catástrofes e a rejuvenescer.
Me deram um diploma.

Algumas pessoas vem me perguntar pelo
crescimento e pela disciplina.
Digo-lhes que o diploma guardei
na gaveta da escrivaninha onde guardo
a fotografia dos mortos.

Decidi, então, ter mais valor,
praticar um esporte violento.
Voltar às luvas. Ser um triunfador.

Escrevi alguns poemas sobre isso.

Do passado ficou esquecida no rosto
minha mirada de estúpido.
Do passado,
me ficou a cadência.

Depois
fui tirando de minha cabeça o sol,
as tontas ilusões.

(De Miguel Oscar Menassa in El Oficio de Morir - Diario de un
psicoanalista. Bibioteca Nueva, Madrid, l983)

frase feita


Si usted cree que es capaz de vivir sin escribir, no escriba.

(Gabriel García Márquez citando Rilke no livro “Vivir para contarla”)

domingo, 10 de maio de 2009

poema de bolsa


(Lúcia Bins Ely)
presa de um tirano
o cárcere esvazia
espuma e esperança

porque o homem
é um calabouço aberto
acima do nada

e seu coração
esbarra
no próprio carcereiro

a culpa para a psicoanálise

Quem é mais culpado que quem?

No neurótico obsessivo, os escrúpulos, as auto-reprovações e os tormentos são de caráter consciente.
Na histérica, ao contrário, há indiferença, pois, ela atua como se nada soubesse desses sentimentos, como se a culpa fosse muda. Igualmente, a necessidade inconsciente de culpabilidade está sempre presente como limite interno e se apresenta sob a fachada chamada por Lacan de sem fé e sem lei da histeria apresentada por meio de suas intrigas e de suas ações, que, por sua vez, mostram pequenos e grandes acidentes.
No “Eu e o Isso” e em “O Problema econômico do masoquismo”, de 1923 e 1924, respectivamente, Freud fala da enfermidade e de como o sentimento de culpabilidade encontra satisfação nela.
O neurótico obsessivo diz “sou culpado ou me martirizo com pensamentos de perda, de morte”.
Ao contrário, na histérica a culpa aparece como forma de necessidade de castigo inconsciente, através da provocação de lesões ou acidentes no corpo. Ela não reconhece diretamente, porém se castiga.
O suplício, a punição, a tortura e a disciplina nos falam da culpa dentro das culturas e subculturas, parece que a culpa é um motor ... e o desejo???

Marcela Villavella

sessão desvelada



Luís, 40 anos.
Médico cardiologista. 1 filho. 1 pai. 1 mãe. Vários tios. 1 ex – esposa. 1 namorada atual: Marita
- Entre Luís, boa tarde.
- Hoje estou extenuado. Operei toda a manhã e ao meio dia Marita apareceu no Hospital... Quase morro!!!
- Não é um pouco exagerado morrer por que se viu a namorada no lugar de trabalho???
- É que eu saía da sala de operações conversando intimamente com uma colega e ela me viu e teve um ataque de ciúmes ali mesmo!!!
- Então, tu quase morres ou quase a matas?
- Bom, matar… Morrer… em meu trabalho é coisa de todos os dias... porém um ataque de ciúmes... Isso não se aceita assim “nomais”!!!
- Por que? Os ciúmes são da vida. Tu não sentes ciúmes dela??
- Sim… não… não, sinto ciúmes… e ademais nunca teria um ataque de ciúmes, por que me parece algo excessivo para mim: sou um médico!!! Faço muitos milagres diariamente. Curo corações!!! Todos me respeitam e ela entra e me começa a gritar diante de todo o hospital!!!
- O coração dela tu não curaste e, como por reação, me parece que tu o feriste!
- Estou destroçado… não quer mais ser minha namorada... então pensei... Tu não podes lhe chamar por telefone e lhe dizer que quer falar com ela, e lhe explicar que é muito difícil e muito comprometida a vida de um médico cardiologista, e que muitas vezes há uma intimidade com os colegas para se defenderem juntos das proximidades da morte, e que eu a quero, porém, me sinto seduzido por todas as mulheres, e que ela tem que compreender e aceitar que voltemos a estar juntos por que nunca terá um noivo melhor que eu em todo a sua vida!!!
- Luís, teu coração está batendo de forma estranha, e vou te decepcionar: EU NÃO FAÇO MILAGRES, continuanos na próxima.


Marcela Villavella

notícia


No dia 8 de maio se realizou o 1° movimento da série saraus de poesia que o Grupo Cero promove em parceria com o Instituto Goethe.
A Biblioteca, local do evento, organizada pelo Uli e pela Mônica, esteve linda e aconchegante.
Cadeiras num circuito verde esperavam o público, que, numeroso, compareceu com vontade de ler e ouvir o poeta Brecht.
Algumas leituras foram surpreendentes, cheias de vida, repletas de amor...ah, quiséramos nós que nunca mais acabasse aquele momento.
Bem, acabou!
Todavia, depois desse, outro virá.
Então, desde agora, esperamos os amantes (fiéis ou infiéis) de Brecht para o 2° movimento de poesia, com Rainer Maria Rilke, no dia 10 de julho, na Biblioteca do Goethe-Institut.
Logo abaixo postamos os 2 “cadáveres esquisitos” escritos durante o encontro.
Para recordar, cadáver esquisito é uma técnica de escrita coletiva utilizada pelos poetas surrealistas, a contar, mais ou menos, dos idos de 1925, cuja frase primeira foi "o cadáver esquisito beberá o vinho novo”, por isso o nome ...

Então bebamos o vinho do cadáver!!!

Boa leitura,

VersoB

cadáver esquisito 2 n(o Goeth)e


solidão & ternura
no fim
+ que fome
tranquila, muito tranquila.
palavra útil no perpétuo
superar da crise

mas tudo que já foi dito ...
não é bem assim!

cadáver? Brecht?

espero que não seja esta associação

ah! certos ilesos ventos

cadáver esquisito 1 (no Goethe)


o lobo e o corpete
numa jarra
apodrecem a cidade

façam o que eles dizem
para ver como fica
o vai e vem da vida

meu deus, já acabou?

e, sempre, de novo, o amor

sonhos do amanhecer

apenas

quinta-feira, 7 de maio de 2009

notícia


“4 movimentos de poesia”

Série de saraus poéticos


O Grupo Cero Brasil, em parceria com o Goethe-Institut Porto Alegre, promoverá nos meses de maio, julho, setembro e novembro de 2009, sempre na 2ª sexta-feira do mês, às 19 horas, na biblioteca do Instituto, saraus poéticos em reverência à poesia escrita originalmente na língua alemã.
Em cada recital será homenageado um poeta, sendo, sucessivamente, Brecht, Rilke, Goethe e Schiller.

1º Movimento - Bertolt Brecht

Morgens und abends zu lesen

Der, den ich liebe
Hat mir gesagt,
Dass er mich braucht.

Darum
Gebe ich auf mich acht
Sehe auf meinen Weg und
Fürchte von jedem Regentropfen
Dass er mich erschlagen könnte.


Para ler de manhã e à noite

Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.

Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de chuva



Local
Biblioteca do Instituto Goethe
Rua 24 de Outubro, 112 (2º andar) – Porto Alegre

Data
8 de Maio de 2009 (sexta-feira)

Horário
19h

Entrada franca

Informações
biblioteca@portoalegre.goethe.org ou (51) 3222-7832


Próximos Movimentos


Rainer Maria Rilke
10 de julho

Johann Wolfgang von Goethe
11 de setembro

Friedrich von Schiller
novembro (na Feira do Livro) - Comemoração dos 250 anos de nascimento de Schiller.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

poesia cero



vinha
caveira de pombas

cemitério de gordas

orum
a me cortejar

vinha
maçã na selva
de sinhazinhas

camareira de sombras

tão-só
escriba de pratos
atabaque sem sal

eliane marques



+ psicoanálise

(Van Gohg)


Mas o que não é mito, e que Freud no entanto formulou tão logo formulou o Édipo, é o complexo de castração.
Encontramos nesse complexo a mola mestra da própria subversão que aqui tentamos articular com sua dialética. Pois, propriamente desconhecido até Freud, que o introduz na formulação do desejo, o complexo de castração já não pode ser ignorado por nenhum pensamento sobre o sujeito.
Na psicanálise, sem dúvida, muito longe de se haver tentado articulá-lo mais cedo, foi precisamente em não compreender a razão dele que houve quem se empenhasse. Eis por que esse grande corpo, muito parecido com um Sansão, fica reduzido a girar a mó para os filisteus da psicologia geral.
Seguramente há nisso o que se chama um osso. Por ser justamente o que expomos aqui: estrutural no sujeito, o complexo de castração constitui neste essencialmente a margem que todo pensamento evitou, saltou, contornou ou encobriu, todas as vezes em que aparentemente conseguiu apoiar-se num círculo, fosse ele dialético ou matemático.


(Escritos, Jacques Lacan, Campo Freudiano no Brasil, Jorge Zahar Editor, p. 835)

traduceiro

ATAVISMO

O garoto respira mais fresco, escondido
por postigos, olhando pra rua. Da clara fissura
se percebe a calçada, no sol. Não caminha ninguém
pela rua. O rapaz gostaria de sair
assim – nu – é de todos a rua – e afogar-se no sol.

Na cidade, não pode. No campo, talvez,
se não fosse o profundo do céu na cabeça,
que amedronta e humilha. Há a relva gelada
que faz cócega aos pés, mas as plantas que miram
e os arbustos e troncos são olhos severos
para um corpo tão débil e sem viço, que treme.
Até a relva é estranha e repugna o contato.

Mas a rua é deserta. Se alguém a cruzasse,
lá do escuro o rapaz ousaria fitá-lo
e pensar que as pessoas escondem um corpo.
Mas quem passa é um rapaz de músculos fortes,
e a calçada ressoa. O cavalo demora
a partir, nu e sem pejo, debaixo do sol:
vai marchando no meio da rua. O rapaz,
que queria ser forte e moreno como ele
e quem sabe puxar a carroça, ousaria mostrar-se.

Se há um corpo, é preciso exibi-lo. O rapaz não percebe
que cada um tem um corpo. O velhote enrugado
que passava de dia não pode ter corpo
assim pálido e triste; não pode haver nada
de tamanho pavor. Nem sequer os adultos
ou as mães que oferecem o peito aos meninos
estão nus. Têm um corpo somente os rapazes.
O garoto não ousa mirar-se no escuro,
mas bem sabe que deve afogar-se no sol
e habituar-se aos olhares do céu, para ser depois homem.

(Cesare Pavese, Trabalhar Cansa, tradução Maurício Santana Dias, 7 letras/Cosacnaify)

era uma vez

O GATO E O GALO

Um gato queria ter uma boa razão para devorar um galo que caiu em suas garras.
- À noite – acusou-o - , teus gritos não deixam os homens dormir.
O galo se defendeu:
- É um serviço que lhes presto, chamando-os a seus deveres.
O gato não se abalou e acusou o galo de ultrajar a natureza por não respeitar nem a mãe nem as irmãs.
O galo respondeu:
- Isso reverte mais uma vez para o bem de meus patrões: eles têm assim ovos em abundância.
Os pretextos especiais de nada servem quando o celerado, desavergonhadamente, está decidido a fazer o mal.

(Fábulas, Esopo, tradução de Antônio Carlos Vianna, L&PM Pocket, 2004, p. 8)