terça-feira, 28 de abril de 2009

verso b

POEMA DO BECO

Manuel Bandeira

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?

- O que eu vejo é o beco.

ensaio




sala de amores (brutos?)



Fazer versos nem sempre é fácil. Às vezes faltam palavras. O pensamento busca lá longe algum dizer que combine com angústia, luxo, medo, saudade, mensagem, deserto, fogo, pluma. Busca nos arquivos e traz solidão, amor, ameaça, rosa, rio, fome, diluição. Depois, são os objetos que saltam aos olhos e dizem que também estão na brincadeira, querem ser vistos, pensados, citados no poema. Então, é hora de encaixar o castiçal, a mesa redonda, as vidraças sujas e a garrafa vazia. Em momentos de devaneio surgem as moscas descaradas, as pontes curvadas, o velho sem dentes e a árvore enrugada.
Então me retiro e deixo que as palavras se encontrem, conversem entre si, mostrem o que uma tem a ver com a outra e vou até a janela em sinal de respeito à reunião das autoridades que agora estão frente a frente.
Depois de anos separadas devem ter muito a dizer. Talvez conversem sobre o passado, talvez encontrem no presente seu sentido mais avançado. Isso de ir até a janela ou ao boteco comprar cigarros foi um jeito que arrumei para que depois me convidem ao encontro. Descobri que com as palavras não posso mais do que elas querem me dar. É preciso ser direto, sem nove horas, sem diz-que-me-diz-que. São questões muito sérias as que as palavras tem pra dizer. E pensar que talvez seja o primeiro contato que esse conjunto de palavras se faça - castiçal, moscas descaradas, luxo e ameaça - me tranqüiliza, me dá nome. O que poderia eu falar delas antes de elas com elas mesmas. Seria abuso da minha parte supor que as palavras não tenham o que dizer entre elas. Ao contrário, têm muito a contar. São mais velhas que o mais velho dos meus antepassados, mais antigas que as ruas, que as árvores, que os tempos que posso imaginar. Devem ter muito a falar. Deixo de lado o imaginário e solto essas majestades ao tempo de agora.
Um jogo de palavras vence guerras, vence fome, vence a dor, vence a fúria. Um jogo bem feito ganha o mundo, gira tempos, atravessa planos, constrói amor. Aparentemente tão simples e, comprovadamente, tão fortes, são decididas e vorazes essas benditas. Concordo que algumas palavras nos surpreendam pelo impacto, pois revelam com um modesto conjunto de letras o mais conturbado desejo que estava lá dentro do peito, bem guardado na redoma da arrogância do eu. E então, vem uma palavra e abre as jaulas, solta a criatura medonha e vai embora com o vento. Sim, as palavras são objetivas, não importa por que vieram e o que causaram, importa que conseguem diluir um bruto amor e consertar o mais antigo dissabor. Da criatura solta resolva quem a criou, isso não é problema dessas palavras, que outras venham e se responsabilizem pelo próximo ato. Palavras são responsáveis pela prisão e pela libertação.
E passados alguns minutos em que já concedi o tempo para apresentações, discussões, lembranças e apaixonamentos, posso então, voltar ao posto e encará-las de frente. Agora, são outras palavras que encontro, mais dóceis, mais redondas, mais dispostas, posso vê-las na construção dos versos. Aprendi que esse respeito com as palavras é fundamental, pois são elas que me emprestam suas vidas para que eu possa continuar viva na escritura.


(Barbara Corsetti)

+ psicoanálise

Que os poetas legislem com seus versos a vida dos homens e que os psicoanalistas expliquem, diríamos, a maneira de um mestre, os mecanismos intrínsecos de dita legislação não são, todavia, provas suficientes para que sigamos galardonando nossos poetas e nossos médicos psicoanalistas e sigamos recolhendo nossos loucos nos manicômios, ou nos seus substitutos, nem sempre diferenciados claramente da fonte da qual provêm.
Uma maneira de pensar inumana gera uma maneira de pensar humana e isso, sem dúvida, não dá ao assunto o “status” de verdade, pois devemos dizer: não é na verdade da loucura onde se aninha a humanidade, e, portanto, não é, precisamente, humanidade o que ambiciona o discurso psicótico senão, melhor, uma palavra que por sua brutalidade interrompa o fluxo do que tendo que ser desejo, todavia, é necessidade nele.

(do livro "Freud y Lacan –hablados II-" de Miguel Oscar Menassa, Editorial Grupo Cero, colaboração da psicoanalista Marcela Villavella)

frase feita


(abapuru, de Tarsila do Amaral)




A felicidade é uma argúcia do sistema capitalista, mas o gozo é uma posssiblidade do trabalho humano.



(Miguel Oscar Menassa in Freud e Lacan - Falados 1, Editorial Grupo Cero, Porto Alegre, 2007, colaboração da psicoanalista Lúcia Bins Ely)

domingo, 26 de abril de 2009

poema de bolsa

carcome a cor
sofro a sorte
e solidão

1 morte

tenho a chover

do telhado
espio
frio folha vime
a prima
dona
do pássaro
que trai
a cela

des-vario
caída de sal
fome de abril

assola
artimanha pranto
raiz

aurora que sabe
o luto
e ama

(sem saída)

falta incenso
em sua vela
eliane marques

sessão desvelada




Maria chega sempre com pontualidade.
Me cumprimenta com uma cordialidade tão exagerada, quanto exasperante.
Revisa o divã antes de se recostar, buscando quem sabe as marcas de algum corpo anterior, algum casaco anterior, algum sentido esquecido na pequena almofada da cabeceira.
Ao começar a falar escolhe as palavras como se escolhesse a roupa adequada ou o caminho a seguir numa encruzilhada.
- Hoje tudo me parece “especial”… Está tudo um pouco “esquisito” ao meu redor…
- Por que diz isso?
- Quanto toquei a campainha do porteiro eletrônico você me abriu a porta sem perguntar quem era... como estava tão segura de que era eu???
- ...
- Não quer me responder... espero que não me diga que hoje vim paranóica.
- ……
- Sim, já sei que não vai me responder nada, ao fim e ao cabo a vida é assim: um fala sozinho todo o dia e a ninguém lhe interessa nada do que um tem para dizer, o mundo é uma bola vazia que gira solta no universo, e não se conecta com nada... já não há satélites, tudo sofre de solidão.
- Quiçá a que se sente vazia, a que sofre de solidão é você e não o mundo. Você não é o mundo.
- Porém tenho um mundo.
- E como é hoje seu mundo?
- Oco, porém se move. Ao contrário, minha mãe vive num frasco. Olhando a novela da novela da tarde como se isso fosse sua família. Toda a casa está desorganizada, os copos sujos, os pratos sem levar, a mim me dá asco essa maneira de viver, porém chego do trabalho e começo a dar voltas pela casa buscando os copos sujos do dia anterior, levantando os papéis do chão, as chícaras de café. É uma hora dando voltas e voltas no silêncio para que tudo volte a estar em orden e possa me sentar e descansar.
- Voltas e voltas como um satélite.
- Não me venha com metáforas!!!!
- Em seu planeta não há metáforas? Continuamos na próxima.


Marcela Villavella

a culpa para a psicoanálise


(caravaggio)
PARTE 4

Razões ou sem razões da culpabilidade

Crime e Castigo, de Dostoiewski, escrito em 1866, é um paradigma do sentimento inconsciente de culpabilidade do qual fala Freud.
A necessidade de castigo se transforma na concretização de um ato criminoso.
O Direito busca o motivo do crime, a razão do delito, mas a psicoanálise diz que o motivo pode ser a culpa inconsciente, portanto, é um “sem-razão” o que está acontecendo: um sentimento inconsciente de culpabilidade.
Então não se é culpado depois, se não que se é culpado antes, e é a culpa quem empurra ao ato.
Há muitos textos, tanto em Freud como em Lacan, nos quais se trata do tema da culpa, atribuindo essa a questões edípicas no crime. Freud inclui desejo inconsciente e culpa, Lacan toma outro caminho, já que produz um esvaziamento do conteúdo e do sentido do motivo do ato criminoso.

Até o próximo domingo com o tema "quem é mais culpável que quem?".

Marcela Villavella

sábado, 25 de abril de 2009

+ poesia




FILOSOFIA

(Ascenso Ferreira)


Hora de comer – comer!
Hora de dormir – dormir!
Hora de vadiar – vadiar!

Hora de trabalhar?
- Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

+ psicoanálise


(obra de Wilson Tibério - 1923-2005)



O DIZER HIPOCONDRÍACO



PARTE 3



Dizíamos que não havia sujeito mais além da linguagem e que toda a palavra vai mais além do sujeito já que ele é um sujeito falado e esse falar vai também mais além do sujeito que fala.
Se nos referirmos à linguagem hipocondríaca ou à linguagem do órgão, poderíamos dizer que é aquela na qual um órgão particular se torna o referente de uma frase ou de um discurso verbal. Se trataria, então, de um paciente que fala de um órgão e que o faz com palavras.
A linguagem do órgão se apresenta muito diferente da linguagem verbal, visto o órgão não dispor de riqueza maior de vocabulário que sua estrutura e função condicionam. Cada órgão tem uma espécie de dialeto, um código linguístico delimitado e particular que determina sua forma de falar. Ao serem suas possibilidades tão limitadas, a linguagem do órgão resulta demasiadamente pobre como para dar conta da combinação normal dos significantes próprios de distintas zonas erógenas.
Relativamente ao discurso, a hipocondria se compara com a esquizofrenia, pois nessa surge, com freqüência, em seus períodos iniciais, uma alusão a órgãos somáticos ou a suas enervações, nas quais aparecem sentimentos de transformação, de instruções ou de intercâmbios corporais, etc.
Freud nos traz um caso que lhe alcançou o Dr. Tausk sobre algumas observações de uma paciente com esquizofrenia em seu estado inicial.
Essa moça, que acudiu à consulta pouco depois de haver brigado com seu noivo, tinha a seguinte queixa:
“Os olhos não estão bem, estão tortos. Nunca pude lhe compreender. É um hipócrita, um olho torto.” Ele lhe havia torcido os olhos, agora ela tem seus olhos tortos, como se a partir desse momento, já seus olhos não são nunca mais seus olhos, agora ela vê o mundo com olhos diferentes.


A frase esquizofrênica apresenta, assim, um caráter hipocondríaco, constituindo-se na linguagem do órgão.
Desde os começos da Psicoanálise Freud descobre que o humano adoece por que se defende da sexualidade, porém não do saber da sexualidade, se não da relação do saber com a sexualidade, de um saber insabido. No caso da hipocondria isso parece ser rechaçado, negado, por que o enfermo insiste em fazer consistir todas as palavras, está permanentemente atento ao que o órgão lhe diz.
Da psicoanálise diremos que o corpo tem que ser libidinal, pulsional, objeto “a”, contudo, o hipocondríaco não tolera se posicionar como sujeito dividido, o corpo se opõe a ficar marcado pelo significante. Uma frase martela em sua cabeça: “Não sou imortal, algo vai me matar. Porém, o quê?
E assim passa a vida tratando de se esquivar da possibilidade da morte. E como não tolera o sem-sentido, está sempre assomado à borda do órgão pelo qual teme cair.
O hipocondríaco parece duvidar de sua pertinência ao mundo da linguagem, no qual o corpo é apenas mais um significante.
Padece do corpo para não padecer da linguagem, prefere ser presa de seus jugos orgânicos no lugar de aceitar que é a linguagem quem tem a liberdade das combinações.


Até amanhã!


Marcela Villavella

na cadeira do sonho

(mulheres de pescadores)


diáspora


Era comprida. A pele escura. O cabelo planchado a ferro. A outra era clara, gostava de ser vista com essa distinção, cabelos lisos, magra, baixa e bem feia. Ainda assim fora rainha do clube dos negros da cidade. Chamavam-na de Leinha. A outra, nem nomeada era. Ambas gostavam de trotear juntas pelas ruas do centro, a visitar as lojas dos turcos onde experimentavam sapatos, todos, inclusive os masculinos. A compra era deixada sempre para o outro dia, quando seus pés estivessem com o mau humor mais descansado.
Apesar do gosto pelos sapatos que não lhes serviam e das meias esburacadas pelas quais jamais conseguiram observar o sol, suas preferências giravam em torno dos velórios. Nesses eventos não se pagava para ver a cara do finado e os choros das viúvas que, em segredo, agradeciam pela morte de mais um tirano – o pai já fora, agora, o marido, e depois o irmão. Ficavam as dívidas jamais pagas, pois, tratadas como lembranças de quem nada tivera para deixar.
Leinha e a Outra, certa feita, retiravam os móveis de dentro da casa da avó, Dona Rosa, onde residiam com outros milhares de parentes complicados. As cadeiras, sofás, armários, geladeira, mesa... foram colocados na frente do domicílio para que as visitas ficassem à vontade, com mais espaço, nos cômodos da casa. Sim, pois horas antes lhes havia chegado a notícia da morte da avó, que se internara na Santa Casa, sofrendo de forte gripe.
Com indisfarçável alegria arredavam camas e ralhavam com os irmãos e os primos para que as carregassem (as camas), com ânimo, para fora. Além dos sapatos, também gostavam de ralhar entre si e com os outros, principalmente se fosse para organizar uma cerimônia fúnebre em local de mais intimidade com o morto, distinto da frieza das salas velatórias com as quais estavam acostumadas.
A casa já estava vazia, faltava apenas a morta.
Um portador de má-notícia, confundido com o primeiro a oferecer as condolências, jogou-lhes na cara festiva a informação de que os móveis deveriam retornar a seus lugares, pois a morta ainda vivia.
Apesar da desolação, cada cadeira e cada cama e cada tudo restou em seu local de origem, como um ancião retornado à força do hospício, onde fora colocado, por equívoco, pelos filhos postiços. Todavia, o silêncio da mobília comportada durou mínima fração de tempo.
Na madrugada, o mau - portador retornara com a notícia – falecera a velha que não ralhava com ninguém, a não ser com uma cadela vadia chamada Potira, já mãe de mais de 100 filhos e que seria sacrificada quando do desaparecimento esperado. A cova canina, inclusive, havia sido preparada no fundo do pátio por Leinha, que detestava a cadela de moralidade duvidosa.
Os móveis foram colocados para fora, novamente.
Da longa espera se abismou a notícia de que a finada houvera dado novos sinais de vida. As cadeiras, mais uma vez, colocadas em seus lugares, davam sinais de não mais resistirem a tanta diáspora.
Por fim, chegou a notícia batata da morte. Sem dúvida a velha e boa Dona Rosa havia esticado as botas. Os móveis, por sua própria vontade, correram para o pátio e a casa ficou vazia para a comodidade das visitas.
Mas Leinha e a Outra não ficaram satisfeitas. Caiu um toró dágua que estragou os móveis da herança e espantou as visitas que preferiram o desconforto de seus lares à comodidade das goteiras da sala vazia da morta. Os atos fúnebres da cadela Potira foram o consolo dos sobreviventes - ah, sim, a boa Dona Rosa não mais estaria sozinha no vazio da nova morada.


(de Eliane Marques)

tirinhas


sexta-feira, 24 de abril de 2009

era uma vez...



ROUPA SUJA

(Jacques Prévert)


Oh o cheiro terrível e surpreendente da carne que morre
é verão e no entanto as folhas das árvores do jardim
caem e morrem como se fosse outono...
esse cheiro de carne vem da casa
onde mora o senhor Edmond
chefe de família
chefe de seção
é dia de lavar roupa
e o cheiro vem da família
e o chefe de família
chefe de seção
na sua casa de governo do cantão
vai e vem em volta da tina familiar
e repete a sua fórmula favorita
Roupa suja se lava é em casa
e toda família cacareja horrores
e vergonhas
treme e escova e esfrega e escova
o gato bem que queria se mandar
tudo isso lhe corta o coração
o coração do gatinho de estimação
mas a porta está fechada a cadeado
então o pobre gatinho vomita
o pobre pedacinho de coração
que na véspera tinha comido
velhas carteiras flutuam na água da tina
e também escapulários... suspensórios...
gorros de dormir... quepes de guardas...
apólices de seguro... livros de contas...
cartas de amor em que se trata de dinheiro
cartas anônimas em que se trata de amor
uma roseta da legião de honra
velhos pedaços de cotonetes
fitas
uma batina
um calção de vaudeville
um vestido de noiva
uma folha de parreira
uma blusa de enfermeira
um colete de oficial dos hussardos
fraldas
um colete de gesso
um culote de pele...
subitamente longos gemidos
e o gatinho põe as patas nos ouvidos
para não ouvir o barulho
porque ele gosta da moça
e é ela quem chora
é dela que falam mal
é a moça da casa
está nua... grita... chora...
e batendo-lhe na cabeça com uma escova de piaçaba
o pai lhe dá juízo
tem uma mancha suja
a moça da casa
e toda a família a mergulha
e torna a mergulhá-la
ela sangra
berra
mas não quer dizer o nome...
e o pai berra também
Que nada transpire desta casa
honra da família
honra do pai
honra do filho
honra do papagaio Espírito Santo
está grávida a moça da casa
é preciso que o recém-nascido
não saia de casa
não se sabe o nome do pai
em nome do pai e do filho
em nome do papagaio já apelidado de Espírito Santo
Que nada transpire desta casa...
com uma expressão sobrenatural no rosto
a velha avó sentada ao lado da tina
trança uma coroa de sempre-vivas artificiais
para o filho natural...
e a moça é pisoteada
a família com os pés nus
pisa pisa e pisa
é a vindima da família
a vindima da honra
a moça da casa morre
lá no fundo
na superfície
glóbulos de sabão explodem
glóbulos brancos
glóbulos pálidos
cor de filho de Maria...
e num pedaço de sabão
um chato escapa com os filhotes
o relógio soa uma hora e meia
e o chefe de família e de seção
põe o cobre-careca na cabeça de chefe
e sai
atravessa a praça do governo do cantão
responde ao cumprimento do subchefe
que o cumprimenta
os pés do chefe de família estão vermelhos
mas os sapatos estão bem engraxados
Mais vale despertar inveja do que piedade.

verso b responde


O que é um sintoma para o paciente?

Bem, um sintoma é algo que não funciona no real, quer dizer, é algo que não funciona no social.

poesia cero

jogo 1 pedra
na fome do jardim

o sonho guarda o cheiro

armazém solar
de receita
e remédio

gesto de dor
que me arrasta
borda o céu e mata o tempo.

era teu esse minuto?

(Barbara Corsetti)

traduceiro

(os comedores de batata, de Van Gogh)
vagalumes do Brasil

Ficar despreocupado, esperar que um dia ou outro nos livremos da miséria, pura ilusão! Eu me daria por feliz em trabalhar por uma pensão não mais que suficiente, e por minha tranquilidade em meu ateliê toda minha vida. (...)(...) Se pintássemos polidamente como Bouguereau, as pessoas não teriam vergonha de se deixar pintar; mas creio que o fato de acharem que o que eu faço é "malfeito" , "que não é mais que quadros cheios de pintura", me fez perder muitos modelos. Então as honradas putas têm medo de se comprometer e de que zombem de seus retratos. E há com o que quase se desanimar, quando sentimos que poderíamos fazer tantas coisas se as pessoas tivessem um pouco mais de vontade. Não posso me resignar a dizer que "as uvas estão verdes", não me consolo por não ter mais modelos. Enfim, é preciso ter paciência e voltar a procurar outros...E se, quando jovens podemos acreditar que pelo trabalho assíduo podemos satisfazer nossas necessidades, isto atualmente torna-se cada vez mais duvidoso. Disse de novo a Gaugin, em minha última carta, que se pintássemos como Bouguereau poderíamos esperar ganhar alguma coisa, mas que o público jamais mudará, e só gosta de coisas suaves e polidas. Tendo um talento mais austero, não se deve contar com o produto do próprio trabalho; a maioria das pessoas inteligentes o suficiente para compreender e gostar dos quadros impressionistas são e continuarão a ser pobres demais para comprá-los. Será que G. e eu trabalharemos menos só por causa disto? Não - mas seremos obrigados a aceitar a pobreza e o isolamento social como coisas inerentes. E, para começar, instalemo-nos aonde a vida for mais barata. Tanto melhor se o sucesso vier, tanto melhor se algum dia pudermos viver mais folgadamente. O que me toca o coração na obra de Zola é esta figura de Bongrand-Jundt. É tão verdadeiro o que ele diz: "Acreditam, infelizes, que quando o artista conquistou seu talento e sua reputação, passou a estar ao abrigo? Pelo contrário, a partir de então fica-lhe proibido produzir algo que não seja totalmente bom. Sua própria reputação o obriga a cuidar tanto mais de seu trabalho, quanto as chances de venda se rarefazem. Ao menor sinal de fraqueza toda a malta invejosa lhe cai em cima e destrói exatamente essa reputação e essa fé, que um público inconstante e traiçoeiro momentaneamente teve nele". Mais forte que isso é o que diz Carlyle: "Conheceis aqueles vagalumes que no Brasil são tão luminosos, que à noite as damas os fincam com alfinetes em suas babeleiras; a glória é muito boa, mas, vede, ela é para o artista o que o alfinete é para esses insetos.
(do livro VAN GOGH - Cartas a Théo. L&PM, Porto Alegre, 1986, tradução de Pierre Ruprecht)

quinta-feira, 23 de abril de 2009

confábula


DIA INTERNACIONAL DO LIVRO

+ poesia



LUIZ VAZ DE CAMÕES

Carlos Nejar

Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi reposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.

notícias


Hoje, 23 de maio, Dia Internacional do Livro, o Grupo Cero, como tem feito há mais de 1 ano (sempre na 4ª quarta-feira do mês, a zero hora, quer dizer, a meia noite), depois de integrar a Maratona Literária, participou do programa Tribuna Popular, apresentado por Altair Venzon, na Rádio Pampa – AM. O tema discutido foi “Complexo de Édipo”, a partir da obra “Édipo Rei”, de Sófocles.
Dentre os poemas lidos no “ar” Verso B destaca “Luiz Vaz de Camões”, de Carlos Nejar, postado logo acima em + poesia.

verso b responde


O sonho é a expressão de um desejo reprimido?

- Sim, é a expressão. Freud diz que o sonho é “COMO a realização de um desejo”, para que não se confunda a realidade externa com a realidade psíquica. A realização fala de realidade. Alguém poderia pensar que realizou seu desejo na realidade. Sim, mas realizou o seu desejo na realidade psíquica. O sonho é como a realização de desejos sexuais infantis. COMO quer dizer que se realiza, porém no inconsciente, na vida psíquica, não na vida social.

diários

BRECHT

06-11-1944

Frequentes conversas sobre música (a propósito da ópera Golias) com Eisler e Dessau, que é muito menos desenvolvido e parece preso à rotina. A música transforma textos em prosa, até textos em versos, e depois poetiza aquela prosa. Poetiza-a e ao mesmo tempo torna-a psicológica. O ritmo é dissolvido (exceto em Stravinski e Bartok). Para o teatro épico isto é inútil.

(Diário de Trabalho, Bertold Brecht, Volume II, 1941-1947, RJ, Rocco 2005)

terça-feira, 21 de abril de 2009

+ psicoanálise


(double, de Alex Katz)

dar a ouvir, dar a ver
Um pensamento que reclame o naufrágio de todo o pensamento é, em verdade, o primeiro passo no caminho do poético.
Assim, sem pensamentos prévios, a voz e a mirada colocarão em cena significantes que, ao serem escutados pelo coordenador, gerarão o sentido da experiência, e isso é de vital importância remarcar: sem a escuta do coordenador, a voz somente produziria tagarelices sem sentido e a mirada não abandonaria nunca o campo da obscuridade. Quer dizer, a escuta do coordenador permite que voz e mirada, como funções, constituam seus campos respectivos, abrindo dimensões, mansões do dito, que darão a ver um produto sem entrar na dialética dos órgãos perceptivos que a fazem possível – o olho e o ouvido. Assim, a voz e a mirada serão outra coisa, diversa do visto e do escutado, pois o coordenador, situado no lugar de causa do desejo, fará cada elemento do grupo entrar numa busca onde se colocará em jogo, mais além de todo o sentido, dar a ouvir, dar a ver.

(do livro Freud y Lacan -hablados 2- de Miguel Oscar Menassa)

verso b

O HOMEM E SUA SOMBRA 3

Um homem deixou de alimentar
a sombra que transportava.
Alegou razões de economia.
Afinal para quê
de sobejo levar
algo que o duplicava?

Sem sombra, pensou
melhor carregaria
o que nele carregava.

Equivocou-se. Definhou.

Descobriu, então,
que sua sombra o sustentava.


(do livro "O Homem e sua sombra", de Affonso Romano de Sant'Anna)

frase feita



La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla.

(García Márquez, do livro Vivir para contarla, 6ª ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2008)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

notícias



Nesta quarta-feira, dia 22 de abril, véspera do Dia Internacional do Livro, o Grupo Cero participará da Maratona Literária promovida pela Secretaria Municipal da Cultura. Além de integrar a leitura coletiva de "Cem anos de solidão" , apresentará, num dos intervalos, o curta-metragem "Uma Carta ao Presidente", baseado no poema homônimo de Miguel Oscar Menassa.


"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então..."
(Gabriel García Márquez)

Continue essa leitura conosco durante a Maratona Literária.
Horário: 19h
Local: Centro Municipal
de Cultura Lupicínio Rodrigues
Verso B

domingo, 19 de abril de 2009

poema de bolsa

tamarindeiro
é pesada turquesa
que rega

a terra precoce
de um guarda núbio
no egito

grito de cerâmica
carregado no cais

punhado de anéis
ossário de meninos

feito o âmbar
batendo
o piso

casulo
onde faraós
(sonolentos)
espiam o desabrigo

um rosto
(de subúrbio)
com sola de madeira
botões de azul
clandestino

cabeça rasgada
bronze
recém-polido

casco e nau

peruca de ânfora
que escorrega nova
e postiça

um cântaro de mentiras
para suportar a morte
a rosa quebrada
o colar perdido

traço de malaquita
que desborra a
margem barrenta
do nilo

(eliane marques)


a culpa para a psicoanálise

(Prometeu, de Caravaggio)


A culpabilidade é um sentimento?

O sentimento de culpabilidade não se deriva de nenhuma experiência vivida ou acontecida, senão de um afeto produzido pela estrutura.
Pensar a culpa como o faz a psicoanálise, como sentimento inconsciente de culpabilidade, permite associar o crime com o castigo.
Em Totem e Tabu, Freud mostra que um crime primordial, dos filhos contra o pai da horda primitiva, marca a origem da lei e funda, ao mesmo tempo, um sentimento inconsciente de culpabilidade.
No seminário de a Ética da Psicoanálise, Lacan diz que esse assassinato foi em vão, por que a ambivalência põe a descoberto após o crime, por um lado, o amor ao pai que empurra à culpa, e de outro, à obediência retroativa. Dessa maneira, o amor ao pai se torna o reverso do supereu.
O pai ideal do freudismo será questionado por um pai que morre por seus próprios pecados, como dirá Lacan, no pai de Hamlet, ou retomando o sonho do pai frente ao ataúde do seu filho morto. Quiçá a culpa tenha o caminho da identificação com esse pai, tão severo ... ser mais severo que o próprio pai, ou ser severo pelas faltas do pai.

Até o próximo domingo, com as razões os sem razões da culpabilidade.

Um abraço,

Marcela Villavella.

sábado, 18 de abril de 2009

na cadeira do sonho

(Appolinaire e seus amigos, de Marie Laurencin, 1938)

verso cero




No meio do homem homenize
humanize


no meio do homem
no meio do homem, uma palavra diz:
caminhe!


no meio do homem homem e
no meio do homem há um caminho
caminhe!


no meio do homem humanize
no meio do homem há um caminho
humanize!

no meio do caminho
um homem


(de Lúcia Bins Ely)

tirinhas


+ psicoanálise


O DIZER HIPOCONDRÍACO

PARTE 2


Nos primeiros escritos freudianos do final do século XIX já se elabora a viabilidade do termo hipocondria por que se avalia sua referência fixa ao sintoma do medo à enfermidade e sua exigência, como condição prévia, da existência de parestesias e sensações corporais penosas. No caso de Anna O. chama a atenção de Freud o fato de os órgãos da paciente intervirem na conversação, ou, diretamente, na fala.
Pela noção de erogeneidade, segundo a qual as zonas erógenas podem substituir os genitais e se comportar como a sede de grande quantidade de manifestações e descargas, diremos que toda a troca desse tipo de erogeneidade num órgão poderia ser paralela à troca de carga libidinal no “eu”. Os órgãos podem funcionar todos e cada um como zonas erógenas, capazes de se excitar, aumentar ou diminuir em determinada parte do corpo. Por isso, no hipocondríaco se produzem também, sem dúvida, mudanças funcionais da ordem das perturbações vaso-motoras, circulatórias, suores, palpitações e etc.
Segundo Freud, na neurose os processos psíquicos são os mesmos durante um bom trecho. Apenas depois entra em jogo a solicitação somática, que procura para os processos psíquicos inconscientes uma saída pelo corporal. Quando esse fator não se apresenta, o estado total será diverso de um sintoma histérico, ainda que, também, em certa medida, possa ser semelhante a uma fobia ou a uma idéia obsessiva, em fim, um sintoma psíquico.
Na hipocondria podemos ver o máximo nível de retração da libido do “eu”, já que seu nível de simbolização é pobre, pois logra simbolizar o mínimo possível. Se lhe compara com a megalomania – o delírio de grandeza – como uma tentativa de simbolizar, embora toda a libido esteja posta no “eu”. Na hipocondria a libido volta ao “eu” e fica capturada no organismo, na megalomania, ao menos, algo se simboliza.
A partir da atualidade de uma erogeneidade específica, nasce a sensação somática que é condição para que se constitua o traço hipocondríaco, partícula pensada como constitutiva de qualquer neurose.


Até o próximo sábado!


Marcela Villavella

quinta-feira, 16 de abril de 2009

verso cero

vento que despenca verde
corrompe ilha
esconde moinho


parte vozes de árvore
parte vezes do jogo
parte olhos do espelho


de golpe e galope
o tiro mostra um ponto
cruz acesa


clima
vitrine
osso

amor queima-folhas

(Barbara Corsetti)

confábula



(black shoes, de Alex Katz)

psicoanálise & direito

Instrumental Psicoanalítico e Racionalidade Jurídica

Em que consiste o uso do instrumental psicoanalítico para intentar revelar a racionalidade subjacente ao discurso jurídico ocidental? Trata-se de Psicoanálise do Direito ou das Instituições?

Legendre em “O Amor ao Censor” afirma não serem psicoanalisáveis nem as instituições, nem os textos jurídicos. São inanalisáveis por definição, diz, visto as ficcões não serem dotadas de corpo e carecerem de palavra – são estruturas vazias as quais preenchemos com textos que parecem servir para fazê-las falar.

O Direito não é palavra de um sujeito, mas uma avalanche de textos com os quais se recheiam as instituições e se produz assim um particular efeito de ficção: parece que as instituições falam.

Esse efeito, que se poderia apelidar de “teatro de fantoches”, permite a caracterização do Direito como “Texto sem Sujeito”, como efeito estrutural, e a instituição como estrutura.

Ao construir a hipótese de que além do discurso manifesto, existe outro, o denominado discurso latente, Freud pusera a descoberto o trabalho do inconsciente.

Legendre, a partir dessa construção teórica, registra que em meio ao discurso ordinário da censura, sustentado pelos juristas e seus lugartenentes, Freud faz sua aparição, mostrando que algo se joga por conta de outra cena.

O discurso freudiano demonstra a vida pulsional não alcançar o real senão passando, necessariamente, por uma instância de censura e de julgamento onde se resumem nossas relações parentais: o supereu.

Para Legendre esse é o conceito mais importante à introdução da compreensão do mecanismo institucional por via analógica com os mecanismos do psiquismo individual.

Assim, para o Autor, o desvelamento da racionalidade jurídico-institucional ocidental exigiria a distinção de dois pares de registros:

a) o registro da clínica, a singularidade neurótica do caso – deformação ou exageração do conflito natural -, a lei personalíssima que rege as crenças através das quais se assegura o submetimento à própria instância de julgamento - o supereu; e

b) a censura que intenta manipular em renovada reiteração o desejo.;

As alíneas “a” e “b” remetem a uma lógica da submissão, perfilando-se assim a outro registro, o da dimensão social, mediante os mecanismos de submissão e captura, denominadas por Legendre como técnicas de fazer crer.

O estabelecimento da correspondência entre os dois planos, o do supereu da clínica e o do supereu da cultura (Kultur Überich) permitirá a constatação de que a censura para ser lícita e a única, deverá ser conferida a outros que tenham tomado o poder dos pais, que tenham tomado o direito de mirada sobre nós. Fala-se dos doutores cuja ciência “es de la ley” .

O segundo par de registros faz a leitura do lugar onde a leitura se faz. Assim, distingue-se:

c) a leitura do texto institucional do ocidente intentada desde a Psicoanálise para buscar colocar em evidência sua racionalidade; e

d) com os resultados assim obtidos, a releitura do próprio discurso psicoanalítico.

Em ambos os discursos está em jogo o deciframento da submissão e da censura recortadas no mito: as crenças de amor e o desejo.
por Eliane Marques


PARABÉNS A CHARLES CHAPLIN, NASCIDO EM 16 DE ABRIL DE 1889, QUE HOJE COMPLETA 120 ANOS DE ARTE.

diários

BRECHT

26-3-42

Na casa de Reichenbach ontem à noite antes do curfew. Ao menos esses físicos levam a sério suas experiências. No microcosmo deles as coisas são inteiramente anárquicas. Os elétrons não precisam de causas para seu comportamento. Claro que um prato de porcelana não está sob nenhuma obrigação estrita de não voar para o teto quando é posto sobre a mesa.
(Diário de Trabalho, Bertold Brecht, Volume II, 1941-1947, RJ, Rocco 2005)

quarta-feira, 15 de abril de 2009

+ poesia

ACROBATA DA DOR

Cruz e Souza


Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, “gavroche”, salta, “clown”, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! Retesa os músculos, retesa
Nessa macabras piruetas d’aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.

(do livro Broquéis, Martin Claret, 2002)

quarta-com-cortázar



_ Escuta, bobona, já está pronto. Ouçam os dois, agora vai começar. A palavra é menta, tudo nasce daí, vejo tudo mas não sei o que vai ser. Agora esperem, a sombra da menta nos lábios, a origem sigilosa de certas bebidas que se degustam sob luzes de fumaça, retornam algumas vezes como palavras e se somam à lembrança para não deixá-la sozinha sob as antigas luas. (“Bom poema”, disse Marta em meu ouvido enquanto escrevia, rapidíssima). Tudo isto é vão, o importante continua sendo a atitude sóbria dos prédios e as nuvens baixas; no entando, forma parte de vidas já depositadas no fundo de copos secos, com marcas de lábios na beirada onde a poeira do amanhecer se decanta, inumerável.

(do livro Divertimento, de Julio Cortázar, Civilização Brasileira, RJ, 2003, pp. 9 e 10)

psicoanálise em recortes


LENDO FREUD E LACAN


O homem vive pensando, tão-somente, que alguma vez gozará. Não há nenhum outro motivo para viver, porque está tudo pesteado de guerras, de mesquinharias, de desastres, de luxúrias e, no entanto, o homem segue vivendo e não só segue vivendo senão que programando uma vida para dentro de quase quinze mil anos. Por que se o sol se extingue dentro de oito mil anos, o homem está preparando naves espaciais para ver se pode sair da galáxia e voltar antes que expire o prazo, a sonda que lançamos há dez anos volta dentro de três mil e quinhentos e sessenta anos a nos informar sobre a possibilidade de fugir deste sistema onde o sol está a ponto de se enxtinguir. Quer dizer que, apesar da imundície na qual vive e quer seguir vivendo, está programando essa mesma vida imunda para dentro de quinze mil anos. Por quê? Porque tem a esperança de gozar. Assim que, sem Édipo, sem repressão, sem instalação do processo inconsciente, não só não há ser humano senão que não há motivo para viver por que o único motivo importante para viver é poder experimentar algum gozo.


(De Miguel Oscar Menassa, in FREUD E LACAN - FALADOS - 1. Editorial Grupo Cero, Porto Alegre, 2007/ Colaboração da psicoanalista Lúcia Bins Ely).

terça-feira, 14 de abril de 2009

+ psicoanálise

A psicoanálise, lembra Lacan, é um tratamento que se volta para fenômenos marginais, tais como os sonhos, os lapsos, os chistes, mas também para sintomas assim como para estruturas que se chamam neuroses ou psiconeuroses e que Freud primeiramente qualificou como psiconeuroses de defesa. Com efeito, diz Lacan, é na medida em que tal ou tal atividade é erotizada, isto é, capturada pelo mecanismo do desejo, que a angústia, como o ponto-chave da determinação de sintomas, intervém. O termo defesa não significa nada se não for defesa contra o desejo.

(do livro Lacaniana 1, Os Seminários de Jacques Lacan, 1953-1963, Moustapha Safouan, Companhia de Freud Editora, p. 83)

frase feita




A poesia é o meu “métier”, a única arte em que ultrapassei os estágios do jardim de infância.

(de Ezra Pound, do livro Vidas Literárias, Jorge Zahar Editor, 1991, p. 14)

verso b

Minha face prateada pela tarde
nativa de zagais e alegorias
é um reflexo de mim tornado arte,
do centro imóvel que gerou meu dia.
A mão é um rio de coral filtrado
entre conchas de som que o sonho fia,
E são as veias um caminho vasto
para um sangue de amor e de agonia.
Em torno a mim os mármores do tempo
tecem tramas de eterno meio-dia,
e me dissolvem no seu pensamento.
Há cavalos de amor de crinas frias
arrastando-me sempre para dentro:
que eu mesmo sou a minha companhia.


(poema de Marly de Oliveira, do livro “Antologia dos Poetas Brasileiros, Poesia da Fase Moderna”, volume 2, organização de Manuel Bandeira e Walmyr Ayala, Editora Nova Fronteira, p. 218)

domingo, 12 de abril de 2009

poema de bolsa

mães
da sepultura
sem dono

taconeiam
epitáfios
de salto

cadáveres
indecisos
marcham

com os olhos
arrancados

à frente

copos-de-leite
urinam
um menino
em meus braços
(eliane marques)

sessão desvelada

(obra de pablo picasso)


Santiago chega à sessão e quase sem me cumprimentar adentra ao consultório e tomba sobre o divã.

Estou desolado. Desde que Nora me abandonou a vida é monocromática. Tudo é amarelo.
Quando começamos a ficar juntos ela quis que pintasse a parede detrás da cama de amarelo. Eu não gostei, parecia que não era a cor que esperava ver todas as noites e todas as manhãs. Porém ela, tão caprichosa, insistente, conseguiu que essa parede fosse amarela.

-E tu, o que querias

-evidentemente, satisfazê-la. Quando comprei essa casa, não nos conhecíamos, e chamei um decorador para que fosse a casa perfeita, tudo bege, minimalista, poucos móveis, poucos quadros, muitos aparelhos eletrônicos, muito cd, dvd e alguma vela branca pelo piso. Foram 6 meses de idílio com minha casa. Até que conheci Nora. Ela entrou a primeira noite que a levei aí e disse: Que frio tudo. Nesta casa não vive ninguém?
Me pareceu insuportável, porém era tão linda que pensei que esse comentário fosse um acidente prematuro nessa relação e seguimos.

- Sim, seguimos, pode continuar

- A semana passada me deixou. Não quer me ver mais. Me disse que era por que eu não queria ter filhos e ela sim. E me deixou com a parede amarela e uma tristeza enorme.

- Porém tu tampouco querias a parede amarela e agora a tens, e isso te acompanhará na ausência dela.

- Se não tivesse a parede amarela estaria numa solidão imensurável.

- Quiçá se não tivesses te oposto a lhe dar o filho que ela queria, além de uma parede amarela, terias um filho dela.

- Me fez um nó na garganta ... touche!!

- Continuamos na próxima

Marcela Villavella


a culpa para a psicoanálise


(obra de Caravaggio)

PARTE 2


E o que pagamos pela culpa?

A culpa tem um caráter causal, porém essa causa é inconsciente e, portanto, desconhecida para o sujeito.
Quer dizer, a culpa pertence à própria constituição do sujeito do inconsciente.
O padecimento e seus sintomas são o preço altíssimo que o neurótico tem que pagar cotidianamente para aplacar a culpa.
Assim o neurótico atribui ao Outro ou a si mesmo a culpa.
O psicótico, na paranóia, deposita a certeza da culpa no Outro, ou na melancolia, assume a certeza da culpa em si mesmo.
O perverso, a nega.
Todos nós, humanos, cometemos crimes reais ou imaginários, contudo, no caso do neurótico, os crimes são mais sociais, por exemplo, com o dinheiro, com o lucro, com o engano, com a traição, por isso sempre parece um culpado imaginário, ou da culpa inconsciente que o inibe.


Até o próximo domingo com o tema "a culpabilidade é um sentimento?"

Um abraço aos queridos leitores de Verso B.


Marcela Villavella.

sábado, 11 de abril de 2009

+ provençais

Que a folha caia

(Arnaut Daniel)

Que a folha caia
dos galhos lá de cima
e o frio contraia
o vime e o vento oprima
e a doce rima
dos pássaros retraia:
só vejo a prima-
vera de amor que raia.


Tudo regela,
só eu me sinto arder,
que o olhar da bela
me faz reverdecer;
como tremer
se Amor me aquece e vela
e me faz crer
que por mim se desvela?

Boa é a vida
se a alegria a sustém,
se alguém duvida
é que vida não tem,
nem me convém
deixá-la desservida;
mais que ninguém
tive a porção devida.

Se Amor me abriga
não tenho a quem culpar,
quem me desdiga
fará lance de azar,
que ela é sem par
e não há quem consiga
sobrepujar
a minha bela amiga.

Não quero avença
com nenhum outro amor,
nem recompensa
outra que o seu calor;
nenhum senhor
de Pontremble ou Provença
pode me opor
outra melhor, que a vença.

Ninguém destrói a
beleza que irradia.
desde Savóia
não vi tão claro dia,
que desvaria
como a luz de uma jóia.
Assim queria
Páris a Helena em Tróia.

Tal é o portento
que tem minha afeição:
não há num cento
tão formosa feição;
é com razão
que o seu valor sustento
e a vejo tão bela em meu pensamento.

Leva canção
A ela o teu alento:
Sem ela, em vão,
Arnaut te deu talento.

(do livro "Invenção, de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalganti", Augusto de Campos, SP, Arx, 2003)

A poeta e psicoanalista Lúcia Bins Ely nos escreve dizendo que ficou tocada por frase encontrada no livro “El Oficio de Morir, Diário de um psicoanalista”, de Miguel Oscar Menassa.
A frase é a seguinte:

"A morte é para um escritor um ponto e parágrafo. E se é mais que isso, o escritor terá que se psicoanalisar."

Bem Lúcia, queremos mais palavras sobre isso.
E, quem sabe, cada um que leia esta frase também possa escrever algo e nos enviar ou postar comentário.

Um abraço,

Verso B.

da cadeira do sonho

(D. Quixote, de Pablo Picasso)


"pseudotórax"


A casa dos sonhos não era a da minha avó, de madeira verde e pobre demais para os meus projetos de infância, cujos pés amarrados na Rua Tira-Dentes 107, faziam força para cortar as raízes de barro. A casa dos meus sonhos era a que ficava bem antes da subida do Estádio do Grêmio Santanense, na mesma rua, mas distante dos paralelepípedos esburacados que forravam a tristeza encardida dos meus cadernos de primeira série. Soava-me uma mansão de ricos quando, saída da escola, passava à sua frente e um dos seus moradores, meu colega de aula, nela entrava sem que eu pudesse ver um pedaço da sala, dos móveis, dos quadros ... Tudo na casa se escondia de mim exceto o horror de uma porta que se abria, engolia um menino e se fechava.
No sonho a mansão estava aberta. Eu podia ver seus quadros de santos que dormiam nas paredes resignadas, podia me espantar com as imagens dos mártires parados, lado a lado, sem espaço para um estender de braço na fila onde deus mandasse fazer “sentido”. Vasos riscados de carvão se estendiam silenciosos até o céu.
Do lado de fora, as paredes de óleos azuis furtados avisavam-me da loucura da dona da casa, mulher de cera que contemplava o ruído sempre igual saído de pulmões de poetas fatigados. Seus dentes manchados de sangue jamais revelaram o segredo das chaves.


(de eliane marques)

tirinhas


sexta-feira, 10 de abril de 2009


era uma vez...

Segunda canção de muito longe

(Mario Quintana)


Havia um corredor que fazia cotovelo;
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro...

Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa...

Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos reluzentes, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas ...
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos...
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras...
Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar a Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!...
A última vez que a vi ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!

(do livro “Os Cem Melhores Poemas do Século”, Editora Objetiva Ltda.)

traduceiro

A MORTE DE OLIVIER BÉCAILLE


Foi num sábado, às seis horas da manhã, que morri, após três dias de enfermidade. Minha mulher remexia há alguns instantes na mala, procurando roupa de cama. Quando se endireitou e me viu rígido, os olhos abertos, sem respirar, acorreu, achando que se tratava de um desmaio, tocando-me as mãos, inclinando-se sobre meu rosto. Em seguida foi tomada pelo terror; e, transtornada, gaguejou, explodindo em lágrimas:
- Meu Deus! Meu Deus! Ele está morto!
Eu ouvia tudo, mas os sons esmaecidos pareciam vir de muito longe. Só meu olho esquerdo ainda enxergava um clarão confuso, uma luz esbranquiçada onde os objetos se fundiam; o olho direito encontrava-se completamente paralisado. Acontecera uma síncope de todo o meu ser, como que um raio me aniquilara. Minha vontade morrera, nem uma fibra de minha carne obedecia-me. E, nesse vazio, acima de meus membros inertes, apenas o pensamento permanecia, lento e preguiçoso, mas com perfeita nitidez.
Minha pobre Marguerite chorava de joelhos junto ao leito, repetindo, a voz dilacerada:
_ Ele está morto, meu Deus! Ele está morto!
Então aquele estado singular de torpor, aquela carne atingida pela imobilidade, enquanto a inteligência continuava funcionando, era a morte? Será que minha alma estaria se demorando assim no meu crânio antes de alçar vôo? Desde a infância eu era sujeito a crises nervosas. Por duas vezes, ainda bem jovem, quase fui levado por febres agudas. Em seguida, ao meu redor, todos se acostumaram a me considerar doentio; e eu mesmo proibira que Marguerite fosse chamar um médico quando me deitei na manhã em que chegamos em Paris naquele apartamento mobiliado na rua Dauphine.
Um pouco de repouso bastaria, era o cansaço da viagem que me deixava assim tão abatido. No entanto sentia-me tomado por uma terrível angústia. Havíamos abandonado bruscamente nossa província, muito pobres, mal tendo como aguardar meu salário do primeiro mês de trabalho na administração em que conquistara um posto. E eis que uma crise súbita me arrebatava!

(Émile Zola, A Morte de Olivier Bécaille, seguido de Nantas e A inundação, Tradução de Marina Appenzeller, L&PM Editores, 1997, fragmento, p. 7 e 8)

+ psicoanálise






O DIZER HIPOCONDRÍACO



"Os médicos do final do século XIX rechaçavam a idéia da morte ligada à superstição, que falava da morte como um estado misto, mescla de vida e morte. Para eles, a morte não era mais que um ponto geométrico sem espessura nem densidade, a morte não era mais que uma palavra equívoca da linguagem, para designar a detenção da máquina, a simples negatividade."


El hombre ante la muerte. Philippe Ariès


O hipocondríaco diz que tem medo de morrer.
Na “Revista Extensión Universitária”, um trabalho sobre “La Histeria y el erotismo de la insatisfacción”, de Amélia Diez Cuesta, diz que “O sujeito nunca está além da linguagem, porém a palavra sempre está mais além do sujeito... a linguagem é mais máquina que nos faz funcionar que utensílio ao qual damos utilidade”.
Para a psicoanálise não há enfermidade fora da estrutura da linguagem e desde aí entrei no tema da hipocondria, pensando-la como maneira de se posicionar com relação à linguagem.
Uma certa complexidade se abre ao se dizer linguagem do hipocondríaco e até poderia resultar controvertido, pois, é sabido que o hipocondríaco padece de sérias dificuldades de simbolização. Ademais, compromete-se na mesma frase o conceito de hipocondria com o de linguiagem.
Alguns autores ao se referirem à hipocondria dizem: “ela fala do órgão”, ou como Freud a chamava em 1915, o Organsprache, contudo, aludindo à Fala como faculdade e meio expressivo, embora independente da participação de sons, como demonstrava no caso Dora, quando lia na afonia, e a insistência havida em escrever durante esses momentos, que : “Aqueles cujos lábios calam, falam-conversam com todos os dedos”.
Comumente se lhe adjudica a categoria de afecção, sofrimento, padecimento ou enfermidade caracterizada por uma grande sensibilidade do sistema nervoso com tristeza habitual.
A atitude “o temer estar enfermo ou o medo de morrer” ´é a que captura a vida do paciente e a que adquire maior preponderância quando se descreve a hipocondria.
O conceito psiquiátrico habitual põe o acento num temor exacerbado a estar enfermo, e sua particularidade reside na ausência de lesões comprovadas.
Todavia, quando Freud fala da hipocondria e das diferenças e similitudes que mantém com a enfermidade orgânica, chega à noção de que a diferença entre ambas, quer dizer, a existência de uma lesão no órgão, quiçá não tenha qualquer importância.
De outro lado, falará do traço hipocondríaco como uma diminuição do umbral da sensação somática. Dessa maneira, o paciente fala do órgão insistentemente por que essa diminuição do umbral determina que seja o órgão o que lhe fale por meio da sensação somática.
A hipocondria é algo muito complexo que nos enfrenta no vasto território que vai desde o sintoma hipocondríaco à enfermidade psicossomática e ao sintoma histérico de conversão. Ademais, relaciona-se com a psicose, com a paranóia, com a fobia e até se chama histeria masculina.

Até a 2ª parte desta matéria, na próxima sexta-feira.
Gracias,

Marcela Villavella

quinta-feira, 9 de abril de 2009

confábulas


soldados
batem portas
nos sonhos de amo

uma música de seus dedos
cairá?

alguém esquece a razão
no armário do banheiro

céus mais próximos
pedem que a verdade

se perca

na casa grande
a sombra do último tiro
adota lugares



(de Barbara Corsetti)






+ psicoanálise

Quando um doente chega à consulta clínica não espera simplesmente a cura, se não que nos coloca diante da prova de tirá-lo de sua condição de doente, a qual é totalmente diferente, visto que ele pode estar preso à idéia de conservá-la. Às vezes vem a pedir que lhe autentiquemos como doente, outras que lhe preservemos sua doença, que lhe tratemos da maneira como lhe convém, pois isso lhe permitiria seguir bem instalado em sua doença.
(La Identificación en Psicoanálisis, Miguel Oscar Menassa e Amelia Díez Cuesta, Editorial Grupo Cero)