sexta-feira, 24 de abril de 2009

era uma vez...



ROUPA SUJA

(Jacques Prévert)


Oh o cheiro terrível e surpreendente da carne que morre
é verão e no entanto as folhas das árvores do jardim
caem e morrem como se fosse outono...
esse cheiro de carne vem da casa
onde mora o senhor Edmond
chefe de família
chefe de seção
é dia de lavar roupa
e o cheiro vem da família
e o chefe de família
chefe de seção
na sua casa de governo do cantão
vai e vem em volta da tina familiar
e repete a sua fórmula favorita
Roupa suja se lava é em casa
e toda família cacareja horrores
e vergonhas
treme e escova e esfrega e escova
o gato bem que queria se mandar
tudo isso lhe corta o coração
o coração do gatinho de estimação
mas a porta está fechada a cadeado
então o pobre gatinho vomita
o pobre pedacinho de coração
que na véspera tinha comido
velhas carteiras flutuam na água da tina
e também escapulários... suspensórios...
gorros de dormir... quepes de guardas...
apólices de seguro... livros de contas...
cartas de amor em que se trata de dinheiro
cartas anônimas em que se trata de amor
uma roseta da legião de honra
velhos pedaços de cotonetes
fitas
uma batina
um calção de vaudeville
um vestido de noiva
uma folha de parreira
uma blusa de enfermeira
um colete de oficial dos hussardos
fraldas
um colete de gesso
um culote de pele...
subitamente longos gemidos
e o gatinho põe as patas nos ouvidos
para não ouvir o barulho
porque ele gosta da moça
e é ela quem chora
é dela que falam mal
é a moça da casa
está nua... grita... chora...
e batendo-lhe na cabeça com uma escova de piaçaba
o pai lhe dá juízo
tem uma mancha suja
a moça da casa
e toda a família a mergulha
e torna a mergulhá-la
ela sangra
berra
mas não quer dizer o nome...
e o pai berra também
Que nada transpire desta casa
honra da família
honra do pai
honra do filho
honra do papagaio Espírito Santo
está grávida a moça da casa
é preciso que o recém-nascido
não saia de casa
não se sabe o nome do pai
em nome do pai e do filho
em nome do papagaio já apelidado de Espírito Santo
Que nada transpire desta casa...
com uma expressão sobrenatural no rosto
a velha avó sentada ao lado da tina
trança uma coroa de sempre-vivas artificiais
para o filho natural...
e a moça é pisoteada
a família com os pés nus
pisa pisa e pisa
é a vindima da família
a vindima da honra
a moça da casa morre
lá no fundo
na superfície
glóbulos de sabão explodem
glóbulos brancos
glóbulos pálidos
cor de filho de Maria...
e num pedaço de sabão
um chato escapa com os filhotes
o relógio soa uma hora e meia
e o chefe de família e de seção
põe o cobre-careca na cabeça de chefe
e sai
atravessa a praça do governo do cantão
responde ao cumprimento do subchefe
que o cumprimenta
os pés do chefe de família estão vermelhos
mas os sapatos estão bem engraxados
Mais vale despertar inveja do que piedade.

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