sábado, 31 de janeiro de 2009

DA CADEIRA DO SONHO





TAXICODEPENDÊNCIA

(de Barbara Corsetti)

O fato é que pegar um táxi é assim como acordar, necessário e incerto.
Naquele dia, Ane e eu estávamos completamente delirantes. Dentro de um guarda-chuvas pequeno, o mais comum das ruas, caminhávamos inventando frases e tiradas, uma da outra. Havíamos escolhido um filme pra assistir, um filme cujo nome sumira da mente. Depois da pesquisa numa lista, a única dica – era brasileiro. O filme desejado era “Lavoura Arcaica”, e, tive agora mesmo um... claro, ele tem tudo pra gerar mil brancos em qualquer cidadão. A relação arcaica de uma família que vive sob frases malditas do tipo – tudo pode acontecer entre nós, podemos confiar apenas em nós, a família é o mais importante na vida. A desgraça de um ser é não sair dos limites familiares, é não construir sua própria visão do mundo. Bem, “Lavoura” veio naquele dia por que, por que...por alguma questão pra nós. O fato mesmo de estar entorpecida por Nelson Rodrigues, toda a tremulação dos seus personagens, suas trágicas escaras do mundo familiar, incesto, traição, fidelidade, assassinatos, desejos e as pernas varizentas das velhas. Chovia muito, era noite, íamos a um aniversário, num restaurante chinês. Pensando agora, era tudo certo pra fechar o dia, depois de uma série de alternados ou alterados movimentos. Depois de horas e horas trabalhando sobre o projeto de nossos sonhos, claro, estávamos excitadíssimas.



1º táxi – na parada, enfileirados diversos carros, quase sempre sem os seus respectivos motoristas. Nosso táxi, porém, estava estacionado exatamente na frente de uma árvore, quero dizer, a porta por onde entraríamos, debaixo daquela chuva, estava na frente da árvore. Não podíamos entrar – digo pro taxista – alguém vem dirigir esse táxi?vão entrando aí! Vão entrando aí? – nós duas nos olhamos e rimos né, a única coisa que dava pra fazer naquela hora – não dá pra entrar moço! Se vira! E ele também se vira e vai pra outro carro conversar sei lá o que.

2º táxi – rindo e falando mal do cara, fomos à esquina que ficava um pouco além do táxi interrompido, interrompido por uma árvore, interrompido por um taxista logicamente interrompido. Estico o braço. Beleza... pára o nosso táxi 2. Adoro entrar em táxis cheirosos e espaçosos. Claro que contamos a história acontecida. O nosso novo motorista, muito simpático, e profissional, nos apóia e diz que é uma barbaridade o que fazem alguns. Ane e eu seguimos na conversa delirante e o taxista tenta, todo o tempo, entrar na conversa. Claro que ninguém sabe com quem está falando quando a conversa é solta pra todas as galáxias. Aí eu pergunto por aonde ele está indo, por que havia parado na esquina sinalizando entrar para um lado proibido. Aviso imediatamente que ele se cuide: Ane é totalmente rigorosa com as “regras”, tá sempre procurando uma regra pra cumprir, só atravessa a rua em faixa de segurança. Quantas vezes já tivemos que caminhar uma quadra a mais por causa disso. O cara simplesmente responde – vou dobrar aqui mesmo, não tem problema, essa rua já foi mão dupla, um dia a mais não dá nada. Viro pra Ane e pergunto – que lei ele está descumprindo? Desde aí Ane passou a discursar sobre o sistema das leis e me diz – esse é um crime anão. Crime anão??? Vê só o nome dado pro tal crime do cara 2. Segundo Ane os crimes estão classificados como hediondos e culposos (dá vontade de acrescentar os gozosos), o fato é que nesse caso, quando o crime é qualquer coisa como algo não culposo nem hediondo, ele não deixa de ser um crime, ele passa a ser um crime anão. Ah não, essa é muito boa, então, na real, tudo pode ser crime, um anão pode estar sempre a nossa volta. Ok, depois dessa fomos deixadas no restaurante do aniversário.

3º táxi – na saída do restaurante... isso parece nome de filme de terror. Certo, o aniversário estava muito legal, rimos muito, porém mais um táxi nos aguardava e bem direitinho. Lá fui eu espichar o braço, éramos 4, 3 iriam em 1 táxi e 1 no outro. O primeiro que parou era legal, o carro novinho. Quem fosse pra casa (ou não), iria sozinha naquele, logo passaria outro. Feito, o outro parou logo atrás. Nada contra carro velho, mas que dá uma impressão estranha dá, e senti a maldade. Entra uma, entra outra, entro eu, fecho a porta. Ficamos sentadas atrás, Ane e eu. O fato é que o táxi exalava um cheiro fortíssimo de xixi, sim, alguém tinha se libertado ali atrás, no banco onde estávamos sentadas. Olhei pro motorista pelo retrovisor e aquele cheiro infernal e aquela cara esquisita dele, aiaiai. Acontece que o imaginário voou e não conseguia mais olhar pra aquela cara, nem suportar aquele cheiro maldito. Desceu a pessoa da frente. A chuva continuava: os vidros não abriam. Havíamos saído de um jantar e vai saber o que acontecera naqueles bancos. O jeito foi descer do mictório ambulante. Partimos, Ane e eu, para mais um táxi.

TIRINHAS


sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

TRADUCEIRO

(obra de Beatriz Milhazez)

O PRISIONEIRO

A minha mão tem um gesto
ainda, com o qual afasta;
a humanidade desgasta
a rocha onde resto.

Só ouço as batidas
do coração, que começa
com as gotas caídas
e com elas cessa.

Se caíssem mais depressa,
se um bicho voltasse a passar.
Já foi mais claro em algum lugar-.
Mas quem se interessa.

(poesia de Rilke, traduzida por Augusto de Campos, que compõe o livro “Coisas e Anjos de Rilke”, Editora Perspectiva 2001, p. 53)

ERA UMA VEZ...

O PENSIONATO
(de Eliane Marques)
noite 6

Era de um barro amarelo trôpego, como se a queda lhe esperasse na porta do passo. Os ossos largos lutavam para fugir da escravidão do seu corpo magro pela ação contínua da antiguidade. De sua cabeça lunar e minguante, coberta de fiozinhos de cobre enrolados, descia, rápida, uma corrente elétrica que lhe acendia o palheiro de fumo em ramo ou, ás vezes, de fumo desfiado, comprado em algum boteco apinhado de contas impagas da gente do lugar. O Tuga socava o tabaco em papéis queixosos, na verdade, folhas dos cadernos cansados da desatenção dos netos. Manufaturava desse jeito o oloroso cigarro com o qual eu me embebia quando, ao visitá-lo, tinha de lhe tomar a bênção por ordem de meu pai. Devia-se beijar a mão que resistia em se elevar do braço. Me recuperava da comoção do ato quase religioso durante os 30 dias antecedentes à próxima visita. Na véspera assinalada não dormia: imaginava a mão de Melquíades, saudosa de seu velho clarinete, que teria de beijar.
Enquanto a perversidade da vida ainda não lhe havia salgado os dedos, o Tuga sequestrava os netos da rotina seca e séria dos pais. O avô e a gangue marrom esperavam a aurora na porta da casa amadeirada que logo receberia os pés lentos e pesados de minha avó. Os olhos da “abuela”, de um amor triste e açucarado, descansavam a faina da madrugada com pastéis recheados de céu.
No bairro da Carolina, lugar chamado Tavinha, morava um riozinho que, de vergonha de sua miúdez, se escondia debaixo da saia de uma ponte, a poucas quadras de onde meu avô deixara em pranto a aurora. Alheio ao alvoroço dos metralhas e seus caniços, o Tuga mergulhava o dedo (puro, simples e sem escafandro) no rio. Enquanto os netos exibiam dos anzóis as traíras, jundiás, carás ...ele tirava do miúdo curso d’água o dedo enfeitado, na ponta, com um bicho macilento, metade cobra e metade peixe. Era um muçum o que o “abuelo” pescava. E não mordia? Não, esse bicho era banguela.
O “abuelo” sofria de um irmão, batizado de Vando. O Vando não pescava com os dedos peixes desdentados. Preferia usá-los para pescar copos de cachaça em algum boteco do Cerro do Marco.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

DIÁRIOS









BRECHT

1921, maio

2, segunda-feira

Os dias são vazias cascas de ameixa cuspidas fora. Chove fraco, sopra o vento, estou no quarto frio. Estou sempre vendo a mulher maori ao lado do capitalista gordo e apesar de minha frieza ser total, mesmo sem desejar, ainda sinto pena dela, pois ela faz o mal e já não agüenta. Mas junto com o medo de que ela volte depois de ter estragado tudo, sinto um desprezo crescente por ela. E no dia de seu casamento, eu a arranco de mim com todas as raízes, como uma puta velha em que se tornou de novo.
Sou bom para Bi e a seguro. Não consigo trabalhar.

(do livro “Diários de Brecht - Diários de 1920 a 1922, Anotações autobiográficas de 1920 a 1954”, Organizado por Herta Ramthum, tradução de Reinaldo Guarany, Porto Alegre, L&PM, 1995, p. 87)

CONFÁBULAS



“Lá nos desertos onde a hera cresce
E o mocho desce, procurando a cruz;
Lá, onde a planta da ilusão não medra,”


(Lobo da Costa)

POEMA BUCÓLICO

(de Lúcia Bins Ely)

Junto às uivantes fontes
canta o Lobo sua dor
feito poeta que cava
amores de mera ilusão

falso lenhante de bosque
orquestra com Chapeuzinho
os versos que tramam
suicidas
a morte do caçador.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

QUARTA-COM-CORTÁZAR









da seriedade nos velórios

Uma vez em que eu voltava da França a bordo de um dos distintos barquinhos da nossa Frota Mercante do Estado (Conheço o Rio Bermejo e o Rio Belgrano, lembro do capitão Locatelli especialista em begônias, do camareiro Francisco que era um galego desses que não existem mais e de um barman em cuja escola aprendi a preparar o Coração de Índio, coquetel que, como o nome indica, é popularíssimo na Bélgica) tive a ventura de compartilhar três semanas de bom tempo com o doutor Alejandro Gancedo, sua mulher e seus dois filhos, cada um deles mais cronópio que o outro. Logo se descobriu que Gancedo era da raça de Mansilla e de Eduardo Wilde, o perfeito causeur que com um copo e um havana nas mãos torna-se sua própria obra-prima e que, como o outro Wilde, emprega o gênio na vida embora em seus livros não falte talento.
De muitas das histórias de Gancedo conservo uma lembrança que prova a eficácia com que eram narradas (todo relato é como o relatam, a consciência de que fundo e forma não são duas coisas é o que caracteriza o bom narrador oral, que não se diferencia assim do bom escritor muito embora os preconceitos e os editores estejam a favor deste último). Dentre esses relatos escolho a história, sabendo que a estrago, de como uns conhecidos de Gancedo, que prudentemente chamarei de Lucas Solano e Copinho, foram a um velório e o que aconteceu lá.
Solano foi o encarregado de transmitir os pêsames em nome dos colegas de escritório do falecido, missão que o abrumou a ponto de buscar apoio moral no balcão de um bar da rua Talcahuano onde já estava Copinho em aberta demonstração de como era acertado o seu apelido. Na sexta grappa Copinho condescendeu em acompanhar Solano, levantar-lhe o ânimo, e os dois apareceram no velório com alto grau de emoção etílica. Copinho foi o primeiro a entrar na capela e, embora nunca tivesse visto o morto, aproximou-se do caixão, contemplou-o com austeridade e, virando-se para Solano, disse naquele tom que somente os defuntos suscitam e talvez ouçam:

_ Está idêntico.

Isto produziu em Solano um ataque de hilaridade que só conseguiu abraçando estreitamente Copinho, que, por sua vez, chorava de rir, e assim ficaram durante três minutos, com os ombros sacudidos por estremecimentos terríveis, até que um dos irmãos do falecido que conhecia vagamente Solano se aproximou para consolá-los.

_ Acreditem, amigos, eu jamais imaginaria que gostassem tanto do Pedro no escritório – disse. – Como ele quase nunca ia...

(de Julio Cortázar, do livro”A volta ao dia em 80 mundos”, Civilização Brasileira, 2008, p. 53 e 54)

PSICOANÁLISE EM RECORTES

Sigmund Freud nasceu em 6 de maio de 1856 e morreu em 23 de setembro de 1939. Em 1896 usou pela primeira vez o termo «psicoanálise». Escreveu, entre outros trabalhos, mais de 50.000 cartas ao longo de sua vida.
Freud pertence à história das ciências, enquanto os demais psicoanalistas pertencem à história da psicoanálise.
por Mára Bellini

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

VERSO B

PALAVRAS

Machados,
Após cada pancada sua a madeira range,
E os ecos!
São ecos que viajam
Do centro para fora como cavalos.

A seiva
Brota como lágrimas, como a
Água a esforçar-se
Por recompor o seu espelho
Sobre a rocha

Que pinga e se transforma,
Uma caveira branca
Comida pelas ervas daninhas
Anos mais tarde
Encontro-as no caminho

Palavras secas e indomáveis,
Infatigável som de cascos no chão.
Enquanto
Do fundo do charco estrelas fixas
Governam uma vida.

(de Sylvia Plath, do livro “Ariel”, Relógio D’Água Editores, 1996, p. 173)

FRASE FEITA

(obra de "os gêmeos")


E não há céu que alcance as nossas pequenas aventuras de voar.

(de Lúcia Bins Ely)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

ENQUANTO ISSO, NA CABEÇA DAS EDITORAS...

(obra de "os gêmeos")

A partir de hoje postaremos textos de Psicoanálise escritos pelos profissionais da Clínica Grupo Cero. A sessão se inaugura com a leitura de uma das faces do personagem "Raimundinho", de Nelson Rodrigues, exatamente falado de a "vida como ela é". Toma a coragem de se imiscuir na vida desse sujeito complicado e assina o texto que inaugura o "divã com Nelson", a psicoanalista Barbara Corsetti que, dentre outros trabalhos, é poeta, contista e coordenadora de um tal laboratório do amor, que logo saberemos do que se trata.


Boa leitura.

NO DIVÃ COM NELSON (A Idade de Cristo, Parte I)



A IDADE DE CRISTO
PARTE I


De seis em seis meses tirava uma radiografia. Nada no pulmão. Insistia com o médico:

- Nada mesmo?

E o tisiólogo, esmagando a brasa do cigarro dentro do cinzeiro:

- Rapaz, você tem um pulmão de anjo. Olha aqui. Estás vendo?

De fato, embora leigo, Raimundo podia constatar, na imagem, uma dessas transparências perfeitas, uma dessas transparências totais. Furioso, perguntava:

- E a minha tosse? Essa tosse que não me deixa? A expectoração?

O médico, apanhando outro cigarro (fumava de dois a três maços, por dia), arriscava:

- Do pulmão não é. Tosse nervosa. Deve ser nervosa. Queres um conselho? Um conselho batata? Vai ao psicanalista.

Raimundo saía do consultório, alucinado. A idéia da psicanálise parecia-lhe de um descaro monstruoso. Preferiu experimentar o espiritismo. Mas não foi bem-sucedido. A tosse continuava como um castigo sobrenatural. Se ela tivesse uma motivação conhecida e verificada, Raimundo não diria nada. Mas as provações de falso tísico, de falso tuberculoso, pareciam-lhe excessivas. E, além disso, era um feio irremediável. Feio, magro e lívido.

Punha-se diante do espelho. Suas olheiras intensas pareciam feitas com rolha queimada. Bracinhos e canelas de Olívia Palito. Perguntava de si para si:

- Por que não meto uma bala na cabeça?
(de Histórias da Vida Como Ela É..., do livro de Nelson Rodrigues - Elas gostam de apanhar, Editora Agir)

@@@@@@@@@@@@@
LEITURA DO PSICOANALISTA
Esse é Raimundo.

Nosso personagem é uma criação do total sentido do que chamamos “a histeria no feminino” – o que no masculino é o hipocondríaco. A visita ao médico já diz o que Raimundo foi buscar. Ele quer uma resposta. Mas a resposta ao que não consegue dizer está sendo escarrada por ele - e essa expectoração? Pergunta ele ao médico – essa expectoração que não me deixa?

Assim funciona um hipocondríaco (o masculino da histeria), procurando no corpo, no corpo físico, o que não consegue tornar simbólico. O que não consegue processar a ponto de produzir algo com o que quer, por isso procura no corpo, como se fosse um mapa de interrogações, como se estivesse ao alcance do médico, não dele, mas do médico.

O médico lhe diz – não há nada – ele não suporta, não acredita no que o profissional diz, existe pra ele uma certeza. Ele sabe que algo está escondido, que algo não está sendo trabalhado e continua investigando, dentro de seis meses lá estará Raimundo novamente.

Fosse uma mulher, nossa personagem, chamaríamos de histérica. Por que histérica?

A histeria foi resultado de um encontro de Freud com suas pacientes. Encontro por que Freud realmente as encontrou, encontrou-se com isso que fala por outras vias no corpo de todos nós. O que as pacientes queriam ao consultá-lo é que fossem ouvidas. Pediam a Freud – doutor me deixa falar, escuta os sonhos que tive, quero contar, me escuta doutor.

Qual o drama da histérica?

O drama da histérica é não identificar seu próprio desejo. Confunde-se com o desejo do outro, não consegue perceber que se quer algo é por que ela deseja. Por instantes parece que deseja o que está fazendo, porém, logo depois, lhe surge a dúvida, lhe parece que está tomando tal atitude por que alguém a forçou a isso. Como se não conseguisse suportar que foi ela mesma quem quis ou fez tal escolha. Chega um momento no qual surge uma frase do tipo – não sei mais quem eu sou, por que estou fazendo isso? Esse tipo de frase - não sei mais quem sou – soa como uma pergunta pela sua sexualidade. Sou homem ou mulher? Esse é o jogo da dúvida.

O que joga na histeria é a construção do sujeito, do psiquismo do sujeito no momento primitivo. Lá quando pequena, quando a criança olha para a mãe e vê na mãe um ser inteiro, linda, completa, plena, em que todas as suas vontades são satisfeitas pela mãe, e que essa está lá para salvá-la, para completá-la em sua conquista. Nesse momento a criança estabelece uma relação com essa imagem que vê.

É aí que a histérica se perde. Pois que todos temos esse momento de construção a partir da imagem do outro, isso é fato. É constituinte pra todos nós, todos passamos pela construção a partir da imagem.

Agora entramos na imagem. O que o Raimundo procura? Uma imagem que diga dele, vai até o médico pedindo uma radiografia que fale dele.

A imagem nos faz mergulhar naquilo que vemos. Uma imagem é a visão de algo pronto. A imagem é uma estrutura fechada, com bordas, com movimento próprio. Nessa imagem que nos toma por inteiro é que se dá essa relação pela qual a histérica se envolve e procura lá o próprio desejo - como se estivesse na imagem.

Façamos uma comparação com o jogo de imagens feito pela publicidade. O interessante na publicidade é construir uma imagem forte e marcante, que cause impacto e gere desejo. Para gerar desejo o que é feito? É construída uma imagem de desejo, onde aquele que está usando tal produto desempenha uma posição desejosa com o produto. Para que? Para que o que olhe também queira o desejo. Não é o produto que o consumidor vai buscar – é o desejo que está explícito. É lá onde o outro deseja que está o encontro. É lá onde o outro mostra a satisfação com a escolha que fez que será desejado.
barbara corsetti
A Parte II de "A Idade de Cristo", acompanhada de "Leitura da Psicoanalista", prossegue na próxima segunda-feira. Esperamos seus comentários!

domingo, 25 de janeiro de 2009

POEMA DE BOLSA

DOBLE
(de Eliane Marques)

recolhi-me da morte
com as lágrimas de um pássaro
e seu lenço de arames

queixas emplumadas
batizaram lembranças
dasgarradas de meu suor

acalentou o canto
o naufrágio dos aviões
olorosos à noite

vem noite
cobre meu repouso
com o corpo do dia

na rota da fadiga
refoge dos versos
da falsa Sharazad

sê deserto

a vida é um paraquedas
que desfia cicuta
sobre o mar manso

e sê triste

que em tua boca inchada
beijos, de joelhos, caem

GRAFFITE


(obra de "os gêmeos")

VERSO B



oportet

preciso
é ter paciência
decantar os vinhos
reler um verso velho que o citrino
sumo dos limões
verdecendo acidula

preciso
é ter ciência
depurar do limo
a água que filtra na palavra luz
o hino do menino char a voz
a vólucre voz
o timbre sibilino
do melro de ouro que clausura a aurora

preciso
é ter ausência
sutileza
tactos
amor (o ato e os entre-atos)
do prestimor querência
para fazer deste papel
poema
desta que mana do estilete azul
escura tinta esferográfica

preciso é ter
demência
obsessão
incerteza
certeza

escuridão gozosa
graça plena
fogo liquefeito
para fazer da tinta e da madeira
apisoada em polpa
que na cortiça antes portava
com brasão teu nome:
a coisa
o corpo
a coisa
em si
a dupla valva
o lacre sob as pubescentes sílabas
o preciso desenho
que como ao deus de adão de uma costela
dá-me fazer deste papel poema e da insinuada
tinta faz
mulher

(de Haroldo de Campos, do livro “Crisantempo: no espaço curvo nasce um”, Ed. Perspectiva, 1998, p. 17 e 18)

sábado, 24 de janeiro de 2009

NOVELLA ZERO




Marcela Villavella é poeta e psicoanalista argentina. Todavia, pelo que faz com as palavras (entre parênteses, para que ela não saiba: menos pelas palavras e mais pelo número do sapato e, às vezes, a forma do cabelo ou um vestido que usa) é tida como a Mafalda do Grupo Cero Brasil. Todo o mês toma, com vinho portenho, um avião bem analisado e tomba, com sua mandrágora falante, aqui, no Porto dos Casais. Dizem as más línguas que nestas terras promove separações e abandonos de lar, tendo enfrentado, inclusive, em função do ofício, processos judiciais propostos pelos vitimados.
Pois bem, não é que a Mafalda brasileña nos contagiou com um grave sintoma argentino o qual conseguimos identificar graças a Cortázar, em texto que logo postaremos neste blog, chamado “Grave problema argentino: Querido amigo, estimado, ou o nome puro e simples”. Sim, ao ter que nomeá-la não sabemos se a chamamos por: querida amiga, estimada ou seu nome puro e simples ou ainda outro que lhe caiba (bem) em seus 1, 60 cm; um nome que não pese demais ou de menos, em fim, um nome que possamos carregar sem sinais evidentes de um crime. Neste passo, ela mesma resolveu a questão nos mandando de Buenos Aires, semanalmente, suas novelas, de modo que não temos escolha e apenas podemos lhe nomear de querida, generosa, ...Marcela Villavella e acabou-se. Das novelas, digam nossos leitores enviando-nos mensagens por que tememos dizer sobre elas algo apaixonado e sermos qualificadas de imparciais ou, o que é pior, de puxa-sacos.

Boa leitura,
As editoras.



SESSÃO DE PSICOANÁLISE (3)
(de Marcella Villavella)

Mariano....
Vamos, suba.
Agora recordo que Mariano faltou à sessão anterior, deixou uma mensagem na secretária eletrônica do consultório dizendo que não se sentia bem... não se sentia bem? Veremos...
_ Oi Ana, bom dia, entro?
_ Sim, adiante.
_ Não vieste no outro dia, te lembras?...
_ bom... estava numa encrenca danada, soube que minha mulher tem um amante... um colega de trabalho... foi por casualidade que soube... a esperava no bar da esquina do seu trabalho e, na mesa do lado, havia duas companheiras do escritório falando dela e de um tal de Alfredo, que mantinham um namoro, e não sei o que mais diziam, porém fiquei enlouquecido...
_ podes continuar...
_ me recordo desse momento e não posso acreditar... de repente vejo que ela entra no bar e cumprimenta suas companheiras e vem cumprimentar a mim como se nada...
_ te cumprimentava, como é isso de “como se nada”...
_ eu estava enlouquecido, entende, o que havia escutado... e ela assim, tão faceira... me tapei de raiva, porém não lhe disse nada, porque primeiro queria falar aqui do que aconteceu...
_ e o que aconteceu?
_ não sei... namora um colega...
_ disseste que tinha um amante
_ sim, fiquei muito confuso... faz dias que está estranha... por isso fui lhe buscar no escritório...
_ foste buscar uma pista de algo...
_ não, não, eu não sabia o que buscava, porém estava estranha... quando eu tive uma amante ela não se deu conta, porém eu me dei conta em seguida do amante dela...
_ ...
_ ...
_ sim, te escuto
_ quando eu saía com Andréa, as coisas iam melhor com Sílvia...por isso, quem sabe, não se deu conta. Eu me encontrava com Andréa no horário do almoço e nas quintas à noite no Clube. Me deixou louco essa mulher...
_ as mulheres sempre te deixam louco, as colegas que contaram de Sílvia no bar, Sílvia que estava como se nada, Andréa...
_ ... sim, é um pouco assim... tu dizes que não sei me comportar com as mulheres? Que não sei estar com elas??
_ não sei, não disse nada, tu disseste que te deixam louco.
_ Agora a que me deixa louco és tu, com isso que me dizes... é grave o que aconteceu...
_ e o que aconteceu?
_ Isso que te digo, ouvi que está de namoro com um colega... pensará que sou bobo??' que não ia me dar conta??'.... mas agora não sei o que fazer, porque se eu lhe digo o que ouvi e ela nega???? ou pior.... se lhe digo e ela diz que sim, que está apaixonada por outro??? O que faço?
_ O que quer fazer?
_ Não sei, nada, me parece.... creio que não quero fazer nada, esse é o problema... sempre pensei que se soubesse de algo, lhe matava... me ia embora de casa, lhe batia... não sei, o que todo mundo diz... porém o que me ocorre é pior... não quero fazer nada, prefiro que ela tenha um namoro e deixe de ter um namoro quando lhe convenha... eu a quero... não quero fazer nada. Isso é o que quero...
_ está melhor em haver tomado essa decisão??
_ sim
_ Continuamos na próxima.
(texto escrito em Espanhol e traduzido para o Português por Eliane Marques)

DIÁRIOS

A partir de hoje, nos animamos a postar alguns fragmentos do diário de Brecht, escrito entre 1920 (época em que o autor contava com 22 anos de idade) e 1922. Não firmamos compromisso com a ordem cronológica dos registros, apenas com aquilo que impressionou os editores a cada leitura (Mas que bárbaro isso!) e que, ao remexer no fundo dos seus diários próprios, calados na memória insone (e, por assim dizer, ainda iletrada) os faz afirmar: tchê, com ele também aconteceu, e como pode escrever desse jeito o que exatamente eu senti e não soube expressar!

As Editoras





BRECHT

1921, maio


3, terça-feira, até 6, sexta-feira

Agora vem a desforra e o purgatório. Pedaço por pedaço, eu arranco de Bi uma coisa terrível. Ela tem uma correspondência com um violinista de cafeteria, um sujeito sórdido, foi beijada por ele, visitou-o e deitou em sua cama. Não deu para ele, isso se deduz das cartas. Ela está arrependida, mas o acha um idealista puro. Os dias em que ela mente, são o purgatório.


(do livro “Diários de Brecht - Diários de 1920 a 1922, Anotações autobiográficas de 1920 a 1954”, Organizado por Herta Ramthum, tradução de Reinaldo Guarany, Porto Alegre, L&PM, 1995, p. 87)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

NOVELLA ZERO


Sessão de Psicoanálise (2)
(de Marcela Villavella)



9h45
Campainha

- Olá, cheguei em cima da hora... pensei que chegaria tarde, fui ao Tribunal às 7, tinha uma audiência às 8... pensei que não chegaria... mas …, bem, a juíza esteve no horário, meu cliente também... um divórcio muito doloroso... vinte anos casados... se atiram todo o tipo de culpa, tantos anos de vida juntos, e agora ela perdeu a paciência... apenas me ocorre isso, porque na audiência, ela estava tranquila, e ele destroçado. Meu cliente é ele... chora como um coitado, te parte a alma... sabe, a vida do tipo girava toda em torno dessa mulher, ela era sua pátria, sua bandeira, que sei eu...ele quer deixar tudo para ela, eu lhe digo que não exagere, que ele tem que seguir vivendo, e que ela já tem o bastante... não chego a me dar conta da causa que lhes separou...
- E por que queria saber a causa?
- Boa pergunta... parece que me angustia esse cliente... me faz recordar de meu velho, quando morreu minha velha... ficou sem vida durante muito tempo, até que depois ele morreu... me recordo que chorava enquanto fazia o churrasco aos domingos, não deixou de fazer nada do que fazia, porém tudo com lágrimas, o pranto aberto... me partia a alma... sim... quando morreu minha velha, me partiu a alma... morreu de repente, não pensei que iria morrer.... era eterna... quando era pequeno, tinha horror de que ela morresse, tanto medo tinha que olhava meu velho enquanto jantávamos e pensava... oxalá morra ele e ela não morra nunca....................................
- pode continuar, estou aqui viva, sigo te escutando.
- Fazia anos que não me recordava de minha velha, é verdade, como se também não estivesse morta... porque está sempre... quando meu velho chorava pela morte dela, eu o olhava com um pouco de desprezo, me parecia que exagerava...
- Ou melhor, o desprezo é porque ele seguiu vivo, e ela morreu primeiro... as coisas não se deram como tu havias planejado.
- Quiçá... não sei... muitas vezes sinto desprezo por gente...
- por mim???
- não, não, não dizia isso... como teria desprezo por você... não, ... pelos vizinhos, por alguns pais dos companheiros de meu filho.... por meu sogro....
- pelos pais, por teu sogro... também és um pai...
- não me vá dizer agora que é edípico e tudo isso que dizem os psicanalistas... gosto de me analisar com você por que nunca diz essas coisas... não me faça isso Ana, por favor...
- te pareceu desprezível minha pontuação??
- sim, sim, a verdade é que sim... hoje não te esmeraste em nada.
- Continuamos na próxima
- já??????'
- sim.
- Ok.... que dia raro hoje não??'

(novela originalmente escrita em espanhol; tradução para o português de Eliane Marques)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

FRASE FEITA

QUEM VEM COM TUDO NÃO CANSA!
(cazuza)

VERSO B




a minha velha querida etcetera
tia lúcia durante a última

guerra podia e o que
é mais disse-te precisamente
pelo que toda a gente estava

a lutar,
minha irmã

isabel produziu centenas
(e
centenas)de peúgas para não
mencionar camisas gorros à prova de pulga

etcetera meias-luvas etcetera, minha
mãe esperava que

eu morresse etcetera
corajosamente é claro meu pai costumava

enrouquecer ao falar de como era
um privilégio e se ao menos ele
pudesse entretanto eu

mesmo etcetera jazia tranquilamente
na lama funda et

cetera
(sonhando,
et
cetera, com
Teu sorriso
olhos joelhos e tua Etcetera)


(poema de e.e. cummings, do livro “xix poemas”, p. 35 e 36,
2ª edição, Assírio & Alvim)

HISTÓRIAS CERO





O PENSIONATO

(por Eliane Marques)


noite 5


O pai não a quis. A mãe morrera de parto. Minha avó e o marido I, na época, estavam noivos. A bisavó, aquela da revolta do ferro em brasa com pregos, considerou escandaloso casal ainda não-casado adotar filha grande. Então resolveu tomar a “duas vezes órfã” a seus cuidados. Fermina, agora adotada pela "abuela já em santo matrimônio", fora mandada a um internato em Montevidéu, no Uruguai. Dizem por que impossível, por que não se podia com ela, que tornava a vida de minha avó um inferno. A do marido I não, por que na época a morte já lhe chegara escondida em garrafas de álcool. Do internato, a regra era que a moça fosse liberada apenas quando do casamento. Não sei como se lhe apresentou o marido, um padeiro - proibia-se a saída das dependências da Casa. Apenas sei que, além de padeiro e negro, possuía uma bicicleta. Sei também que, no primeiro dia após as núpcias, ao cruzar a linha férrea pedalando o veículo o trem lhe pisoteou o corpo magro. Tudo rápido. Tudo uma correria de morte. Um padeiro negro, atropelado por um trem negro, nos trilhos vermelhos de uma Montevidéu negra. Não sei se minha tia sofreu. Sei que se tornou mãe de santo, que foi dona de uma sessão de candonblé e que criou vários filhos postiços. Postiços é mentira. Aqueles Rosês e Antonhos e Rauls de minha infância eram filhos dela e do meu tio João Batista, nascido do matrimônio da “abuela” com o marido I. Não, não se trata de incesto. Dizem que Juan Bautista era impossível, que não se podia com ele. Tanto que se exilou em Montevidéu e lá fez 12 filhos com uma louca. Feita a prole, presenteou-a a minha tia. Não sei se a loucura da mulher, uma tal Maria, não fora provocada pela Fermina. Dizem que a tia era má, que carregava bonecas para feitiços em sua mala de viagem a Sant’Ana do Livramento. A mim, foram benéficas tais bruxarias - a chegada de tia Fermina - voando num cabo de vassoura - enfeitou minha infância com elefantes cor de rosa que até hoje guardo no guarda-roupa dos mortos que insistem em me viver.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

POEMA DE BOLSA

(Separação, de Edvard Munch)


REDE

(de Anelore Schumann)

Passei a vida
conforme fui ensinada,
vivi meus antepassados,
agora, velha,
sou minha mãe e minha avó.

Não me alimento de nada,
além de arroz e feijão:

a mesma comida
os mesmos afazeres
as mesmas amizades
as conversas de sempre

Passei intacta a vida inteira.

Ainda haverá vento incerto?

Haverá ainda amor para meu tempo?

QUARTA COM CORTÁZAR


Vê mole tudo o que vê

Conheço um grande amolecedor, um sujeito que vê mole tudo o que vê, amolece as coisas só de vê-las, nem sequer de olha-lás porque ele vê mais do que olha, e então fica por aí vendo coisas e todas são tremendamente moles e ele está contente porque não gosta de coisas duras.
Houve um tempo em que talvez visse duro, quem sabe porque ainda era capaz de olhar, e quem olha vê duas vezes, vê o que está vendo e também é o que está vendo ou ao menos poderia ser ou gostaria de ser ou gostaria de não ser, todas elas maneiras extremamente filosóficas e existenciais de situar-se e de situar o mundo. Mas um dia esse sujeito, por volta dos vinte anos, começou a não olhar mais, porque na realidade tinha uma pele delicadinha e das últimas vezes em que quis olhar o mundo de frente a visão lhe fendeu a pele em dois ou três lugares e naturalmente meu amigo disse tchê, assim não dá, então certa manhã começou a só ver, cuidadosamente a nada mais que ver, e claro que desde então passou a ver mole tudo o que via, a amolecer as coisas só de vê-las, e estava contente porque não gostava de jeito nenhum das coisas duras.
Um professor de Bahía Blanca chamou isso de visão trivializante, e era uma expressão muito afortunada por ser de Bahía Blanca, mas meu amigo não apenas ficou feliz da vida como também quando viu o professor, como é natural, extremamente mole, e o convidou para tomar uns coquetéis em sua casa, apresentou-lhe sua irmã e sua tia e o encontro transcorreu num ambiente de grande moleza.
Eu me aflijo um pouco porque quando meu amigo me vê sinto que fico completamente mole e mesmo sabendo que não se trata de mim mas da minha imagem no meu amigo, como diria o professor de Bahía Blanca, de todo modo me aflijo porque ninguém gosta de ser visto como um pudim de sêmola e em conseqüência o convidem para ir ao cinema onde passam um filme de caubois ou lhe falem durante duas ou três horas de como são bonitos os tapetes da embaixada de Madagascar.
O que fazer com o meu amigo? Nada, é claro. Em todo caso vê-lo mas nunca olhá-lo; como, pergunto, poderíamos olhá-lo sem a mais horrível ameaça de dissolução? Aquele que só vê só deve ser visto; moral melancólica e prudente que chega, receio, além das leis da ótica.

(Julio Cortázar, do livro “A volta ao dia em 80 mundos”, Tomo I, Civilização Brasileira, 2008, p. 62 e 63; têmpera e carvão sobre tela "Retrato de Ida Rubinstein, de Valentin Serov)

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

E AINDA SE MOVE...

Hoje, 20 de janeiro de 2009, toma posse o novo presidente norte-americano, Barack Obama. Espera-se dele, a mudança que cada um já produziu o elegendo, mesmo não sendo eleitor naquele país.
Obama acredita na frase: “nós podemos”.
E o que dessa frase tocou em cada um para que depositássemos nele confiança?
Desde o Quênia até o Alaska mora a utopia do homem que insiste em renascer.
E que audácia tem essa utopia de sempre reinventar a esperança de um mundo melhor, de seres humanos mais humanos?
Essa audácia é a incerteza da vida que nos move, caoticamente, para a aceitação das diferenças.

(por Editores do GrupoCeroversob, Eliane Marques e Barbara Corsetti)

VERSO B


Mapa

Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo uma nebulosa, rodando, sou um fluído,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero por que não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

(Fragmento do poema Mapa, de Murilo Mendes, do livro “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, tela “Ícarus, de Henri Matisse”)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

CONFÁBULAS

(Escriba Sentado, Egito, IV Dinastia, 2620-2500 ac)

ESFINGE

(de Lúcia Bins Ely)

Cabisbaixo, ventava. Eram destroços de planetas outros que lhe entravam pelos poros. Avistara um sem não no ouvido daqueles viandantes. Navegava um estrondo atrás do outro e assim as ondas da atmosfera o deixavam cheio de nomes. Correspondia nomear ainda aquele sangue que percebeu fugir das árvores quando um nome chocando-se com o outro, soava luz. Aproximou-se das raízes de letras que umedeciam as flores e jardineiro fez perdoarperdurar as dúvidas das gentes cósmicas, que por ali rondavam. O orvalho pedregoso escreveu-lhe um enigma: Como pode um coágulo resistir a tantos estouros? Como pode arrebentar um nome e, logo adiante, alçar um vôo se, no meio da sementeira, a eternidade das mãos deixa rastros de um insabido homem.







NASCE EM 19-01-1809 EDGARD POE


O SEGREDO QUE APRISIONARA POR TÃO LONGO TEMPO EXPLODIU PARA FORA DE MINHA ALMA COM A FORÇA DE UM TUFÃO.

(de Edgar Allan Poe, em “O demônio da perversidade”, do livro “Assassinatos na Rua Morgue e outras histórias", p. 17, L & PM Editores)

VERSO B


PSICANÁLISE DO AÇÚCAR

O açúcar cristal, ou açúcar de usina,
mostra a mais instável das brancuras;
quem do Recife sabe direito o quanto,
e o pouco desse quanto, que ela dura.
Sabe o mínimo do pouco que o cristal
se estabiliza cristal sobre o açúcar,
por cima do fundo antigo, de mascavo,
do mascavo barrento que se incuba;
e sabe que tudo pode romper o mínimo
em que o cristal é capaz de censura:
pois o tal fundo mascavo logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.

Só os bangüês que-ainda purgam ainda
o açúcar bruto com barro, de mistura;
a usina já não o purga: da infância,
não de depois de adulto, ela o educa;
em enfermarias, com vácuos e turbinas,
em mãos de metal de gente indústria,
a usina o leva a sublimar em cristal
o pardo do xarope: não o purga, cura.
Mas como a cana se cria ainda hoje,
em mãos de barro de gente agricultura,
o barrento da pré-infância logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar.

(poema de João Cabral de Melo Neto,
do livro “A educação pela pedra e depois”, p. 27, quadro "A morte da mãe", de Edvard Munch)

DA CADEIRA DO SONHO

XADREZ
(de Barbara Corsetti)

Despertei de 3 sonhos na semana que era invadida por piolhos. Se existe coisa mais incômoda e angustiante que sentir piolhos pela cabeça, não sei, o que sei é que no momento não me ocorria nada pior. Os bichinhos caminhavam avidamente pelos fios entrelaçados e cheios de intenções, desafiando o momento em que eu colocaria as mãos neles.
Por que correm tanto os piolhos?
O desagradável nos 3 sonhos era, além dos bichos insanos, as situações em que apareciam:
1 – depois de cozinhar abóboras;
2 – depois de brincar com um cachorro;
3 – depois de pesquisar palavras no dicionário.
Sentada numa grande janela escutei a sirene dos bombeiros.
De repente não estavam as janelas e eu escolhia o que levar comigo.
Tudo na casa branca e grande, agora sem vidros e portas, estava encaixotado ou embalado para viajem.
Eu estava de chinelos e logo teria que me preparar com um tênis.
Em um mundo de tantas escolhas um tênis foi a minha naquela hora. Saí correndo e nem sabia o porquê.
Desatenta às informações que poderiam me interessar, deixei a casa e segui pela rua da frente. Olhei-a de longe e vi dentro dela homens que demoliam as paredes. Corri despenteada.
Arrastando os chinelos virei a rua e entrei em um grande bar. Paredes escuras forradas com madeiras. As mesas, também, de madeira davam ao bar um ar de inverno. Estava desatualizada, não sabia que dia era e nem imaginava que estava no horário do jornal nacional: - e quem eram aqueles apresentadores?
Um homem veio me perguntar se queria algo para beber, pedi uma água.
Havia um tabuleiro de xadrez na minha frente, eu que nunca aprendera xadrez faria a próxima jogada. Ok está na hora de arriscar, vou mexer com esse daqui, pronto posso ir agora.
Depois de várias voltas em linhas desconexas tirei o chapéu e mudei de canal.
A morte falou com sua voz cabeluda que o fim nem sempre é despedida.
Prefiro deixar pra amanhã a curva seguinte
.

domingo, 18 de janeiro de 2009

VERSO B

(Óleo sobre tela, "Amarelo, vermelho e azul", de Wassily Kandinsky)

BIOGRAFIA

Escreverás meu nome com todas as letras,
Com todas as datas
- e não serei eu.

Repetirás o que me ouviste,
O que leste de mim, e mostrarás meu retrato
- e nada disso serei eu.

(...)

Somos uma difícil unidade
De muitos instantes mínimos
- isso seria eu.

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
Aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente
- Como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias,
Transparentes e opacos, segundo o giro da luz
- nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
Leves e livres como a cascata pelas pedras.
- Que metal nos poderia prender?


(Poema de Cecília Meirelles, que, neste momento, lê Anelore Schumann e aproveita a ocasião para tomar um raio de sol de seus cabelos amarelos caídos de uma pincelada de KandinsKy.)

HISTÓRIAS CERO

(O Interior, de Henri Matisse)

O PENSIONATO

por Eliane Marques

noite 4

A rua da minha infância era a de cidade do interior cujo pátio da casa da avó é um cemitério de lençóis brancos engomados. Na época se usava engomar as roupas dos patrões que preferiam o serviço das negras às maquinas de lavar. Havia passado o tempo do arroio, esse fora o de minha avó e morreu junto com suas histórias de lobisomem e de mula sem cabeça. Minha mãe e tias exorcizavam a imundície das vestes (e de seus donos) no tanque de pedra colocado no meio do pátio, a uma distância estratégica entre a casa e o varal, de modo que pudessem correr com mais presteza para um ou outro lado no caso dos gritos de minha avó ecoarem seus nomes. De longe se ouvia as camisas serem batidas como meninos travessos apanhando por se haverem intrometido na conversa dos adultos. Minha mãe era a que batia mais forte e sabíamos da sua raiva pelos gemidos das roupas na tábua de lavar. Às vezes ela permitia que tomássemos banho de mangueira no tanque, nesses dias sabíamos da tristeza dos vestidos de menina pendurados no varal.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

FRASE FEITA


Uma pergunta desacomoda a situação.
(de Barbara Corsetti)
O desconforto é engrenagem fundamental da vida.

(de Barbara Corsetti)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

VERSO B


Que fazer de uma rosa de areia, fugitiva,
contínua como o arroio? Cerquei-a como pude
de uma figura ou duas, somei-a à infinitude
que vi brilhar em certas ruas, sem que viva
ao fim desses volteios mais que a sombra furtiva
de uma aquarela fria. Um dia, ante um açude
de minha meninez, comparei a altitude
e a placidez de um par de luas: uma viva,
altiva, e a outra o rosto da Ofélia suicida;
deduzi do desdobramento do universo
entre a imagem e o reflexo, a explicação da vida,
a senha para o ser, e enganava-me – o inverso
do que amei e perdi também não tem medida,
Alexandria e a luz não cabem no meu verso.

(de Bruno Tolentino, livro “A imitação do amanhecer” (1.5), Editora Globo, p.33)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

HISTÓRIAS CERO


O SONHO
de Barbara Corsetti

PARTE FINAL

Eu, nada.
Ela, calma e sorridente e satisfeita de ter sido A escolhida.
Vi outras cabeças levadas a passear pela sala.
Muitos sorrisos comendo sem parar.
Entrei por outro corredor.
Mulheres me ofereciam banquetes.
Mulheres me ofereciam comida.
Alguém já havia oferecido o mundo de trapos e talheres para o qual olhava uma menina.
Vieram minhas malas. Desci a escadaria longoescura. Avistei uma luzinha.
Era um imenso subterrâneo com degraus subindo e descendo e gente subindo e descendo em cruzamentos gigantescos.
Encontrei um casal de japoneses. Perguntei se estavam na festa e como eu poderia encontrar a saída.
Eles moravam ali.
E não encontram suas malas há 5 anos.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

HISTÓRIAS CERO

(Francisco de Goya, Guerra)

O PENSIONATO
por Eliane Marques
noite 2

Inspirada no martírio enregelado e careca à que me havia submetido o dia anterior tomei meu café do amanhã no grande salão de refeições do pensionato feito uma salomé mirando sua cabeça cortada. Na geladeira não havia nenhum alimento com o rótulo “meu nome” e decidi me apropriar de uma caixa de leite órfã que exigia adoção ou podridão imediata. Durante muitos anos andei naquele labirinto de quartos e corredores com o peso da tristeza sentada nos ombros. Apenas hoje soube que parte daquele tempo foi sonho. E fico de novo triste, afinal não era preciso servir de cadeirinha para uma senhora antiga e carrancuda, padecente do mau hábito de arrotos diurnos.

noite 3

Com seu andar de Maria Madalena em fuga para Inglaterra a freira-chefe se aproximou do banquete líquido do qual eu me deliciava. Sentou-se na cadeira derrotada e muda (a cadeira). A língua se demorou na boca para me perguntar se não queria ser como ela, quer dizer, noiva de cristo. Algo se retorceu em mim. Há tempos havia encontrado semelhança entre mim e aquela mulher da golinha e de olhos azuis que eu via nos retratos. Sim, Anastácia. Anagilda era o nome usado por minha avó. De comum entre as duas havia a história de uma ana-crava. No caso da “abuela”, sua mãe fora fugitiva: havia se voltado contra a proprietária com um ferro de passar roupas à brasa (com pregos). Foi a primeira ferricida da família.
(óleo e têmpera sobre madeira, "Retrato da Jornalista Sylvia Von Harden, de Otto Dix, Centro Georges Pompidou, Paris)


O SONHO

de Barbara Corsetti
PARTE 2

Começavam a servir comida. Várias mesas e gente sentada comendo e rindo muito.
Não havia pratos, nem talheres.
As mãos comiam.
Revirei a volta da casa, buscando entender onde estava. Não sabia chegar ao quarto das minhas malas.
Das paredes dos corredores escorriam veludos vermelhos.
Caminhei entre as salas e bocas religiosas que falaaaavam muito alto.
Estavam muito felizes todos, por horas eram parentes.
Por que tínhamos vindo pra essa casa?
Voltei pro jardim e entrei numa roda que falava sobre como vender melhor um produto.
Quando me envolvi com aquele tema vi um homem saindo da sala que dava para o jardim.
Numa das mãos ele carregava 1 cabeça, erguida pro alto feito troféu. A cabeça era de alguém que há pouco estava ao meu lado, conversando.
O homem a segurava pelos cabelos e gritava alto o nome pelo qual fora conhecida em vida. Fiquei imobilizada.
Todos riram e bateram palmas alegres.
Logo outro homem, carregando outra cabeça recém cortada.
Todos aplaudiam muito e gritavam encantados.
Vi outras pessoas com sangue no rosto.
Andar pela casa. Ouvir as conversas. Não me sentia parte da festa.
Será que daqui a pouco me chamariam pra uma dessas ...
Decidi ficar entre outras mulheres. Quando sentei no vazio da cadeira vi minha mãe diante de mim.
Notei que eu estava com um lenço rosa escuro no pescoço.
Peguei-o na mão e o movimentei como minha mãe fazia no outro lado da sala:


espichando e rezando, espichando e rezando, espichando e rezando, espichando e rezando, espichando e rezando, espichando e rezando. espichando e rezando, espichando e rezando, espichando e rezando. espichando e rezando, espichando e rezando, espichando e rezando.


Escorriam em mim as lágrimas dela e eu não dizia nada. Continuei parada, espichando e rezando.
Uma pergunta de menina sentou-se diante de mim:

– A senhora arruma meu cabelo? Minha mãe prometeu meus olhos!

TRADUCEIRO


ADAPTAÇÃO

Ontem comecei

aprender a falar
Hoje aprendo a silenciar

Amanhã
deixarei de aprender

(POEMA de Erich Fried, tradução de Anelore Schumann, óleo sobre tela "Ansiedade", de Edvard Munch)

NOVELAS CERO

(óleo sobre tela, "A Dança", Henri Matisse)

A sessão escrita

por Marcela Villavella

Querida Estela:

Escrevo à primeira hora da manhã. Hoje é quarta-feira, e à tarde irei ao consultório...
Fevereiro me dá a oportunidade de um dia livre. Voltaste de tuas férias?... Como havíamos combinado, te escrevo diariamente.
Faz alguns dias que tudo o que ocorre entra na cadeia associativa das férias, ou de uma viagem. Quando era pequena, meus pais tinham uma casinha, pequeninha e cálida, na serra. Minha mãe se preocupava muito com essa casa. Cada vez que chovia em Buenos Aires, sofria se chovesse na serra, e se não chovesse, sofria pela “A encantada”. Estava tão longe, que nem nos inteirávamos se chovia, se uma janela chegava a se abrir pelos fortes ventos ... amava e odiava essa casa.
Comprá-la foi idéia de meu velho, ele gostava da serra, os juncos dos arredores, o frescor de lavanda à tardinha.
Nos dizia: olhem que montanhas!!!!
São serras, lhe dizia eu, para lhe mostrar que estava equivocado, para saber mais que ele... E ele respondia: “Essas são coisas de tua mãe ...”
A meu irmão e a mim, nos encantava ir às montanhasserras, chegava janeiro e minha velha começava a sentir que era difícil deixar sozinha a casa em Buenos Aires, e seu coração se partia entre esses dois amores, tão distantes ... se partia seu coração... quando morreu, pensei essa mesma frase... se partiu seu coração, entre não querer viver, mas sem poder caminhar, e o ter que deixar a todos sem sua presença.
A mim, também se me partiu o coração, porém outro coração, nesse dia me coloquei a escrever desenfreadamente, tudo me remetia a essa frase “coração partido” ... metades rubras, negros amos governando as metades, a dor do amor. Tchau Mamãe ...
A enfermeira nos disse: “não sabemos o que ocorreu... estava bem... não sabemos explicar”... Não explique nada, se lhe partiu o coração... feito aqueles pedaços que deixava de testemunhas, entre a cidade e a serra. Os ventos que arrasaram as janelas de sua casa, além da distância, lhe zumbiram demasiadamente no peito... e esse ruído nunca quis desaparecer. Foram o vento, a chuva, os mosquitos que lhe sussurraram há 45 anos.
Foi isso. Não explique.
Querida Estela, nada mais a dizer que até amanhã.

Obrigada por me ler.

Ana