terça-feira, 12 de maio de 2009

verso b



O CORPO O LUXO A OBRA

- 22-23 novembro de 1977 –


A estrela voltaica queimando
a minha obra
morosa afina sombriamente cada cara
soldada
ponto a ponto,
sobre as válvulas, sobre
a luz que se abre e se fecha
na carne
lunar, implacável.
Tudo faísca: a fruta
que se apanha, o feixe
vertebral, os orifícios de sangue
entre os poros
da madeira.
Respira,
dói.
Como uma artéria radial,
a atenção que dói de baixo para o alto, as meninges
abertas por fendas luminosas.

Alimentava-se
dos rostos minados pela rede dos nervos
negros e das veias
até à raiz cravada
da voz
- o terrífico
aparelho da fome. Toda a obra.
Dói.
A memória maneja a sua luz, os dedos,
a matéria.
É mais forte assim
queimada no écran onde brilha
o buraco da carne,
os espelhos
fechados
de repente vivos como oceanos sob
os antebraços, as mãos.

Desta cadeira vejo
a marcenaria da árvore.
Os fulcros do ouro, o hausto
do meio da terra.
O som espacial da pedra cai
no fundo do dia,
pulsa
a noite vascular, estendida
como uma toalha.
E dentro dessa noite cheia de ar negro,
os planetas
luzem
como rostos que se aproximam com as fendas
de sangue.

(de Herberto Helder in O CORPO O LUXO A OBRA, fragmento, Iluminuras, São Paulo, 2000)

Um comentário:

Mara faturi disse...

Hum...este poema faz parte da categoria: "As complexidades do humano", rs,rs; Belíssimo,
bjo