segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

NO DIVÃ COM NELSON (A Idade de Cristo, Parte I)



A IDADE DE CRISTO
PARTE I


De seis em seis meses tirava uma radiografia. Nada no pulmão. Insistia com o médico:

- Nada mesmo?

E o tisiólogo, esmagando a brasa do cigarro dentro do cinzeiro:

- Rapaz, você tem um pulmão de anjo. Olha aqui. Estás vendo?

De fato, embora leigo, Raimundo podia constatar, na imagem, uma dessas transparências perfeitas, uma dessas transparências totais. Furioso, perguntava:

- E a minha tosse? Essa tosse que não me deixa? A expectoração?

O médico, apanhando outro cigarro (fumava de dois a três maços, por dia), arriscava:

- Do pulmão não é. Tosse nervosa. Deve ser nervosa. Queres um conselho? Um conselho batata? Vai ao psicanalista.

Raimundo saía do consultório, alucinado. A idéia da psicanálise parecia-lhe de um descaro monstruoso. Preferiu experimentar o espiritismo. Mas não foi bem-sucedido. A tosse continuava como um castigo sobrenatural. Se ela tivesse uma motivação conhecida e verificada, Raimundo não diria nada. Mas as provações de falso tísico, de falso tuberculoso, pareciam-lhe excessivas. E, além disso, era um feio irremediável. Feio, magro e lívido.

Punha-se diante do espelho. Suas olheiras intensas pareciam feitas com rolha queimada. Bracinhos e canelas de Olívia Palito. Perguntava de si para si:

- Por que não meto uma bala na cabeça?
(de Histórias da Vida Como Ela É..., do livro de Nelson Rodrigues - Elas gostam de apanhar, Editora Agir)

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LEITURA DO PSICOANALISTA
Esse é Raimundo.

Nosso personagem é uma criação do total sentido do que chamamos “a histeria no feminino” – o que no masculino é o hipocondríaco. A visita ao médico já diz o que Raimundo foi buscar. Ele quer uma resposta. Mas a resposta ao que não consegue dizer está sendo escarrada por ele - e essa expectoração? Pergunta ele ao médico – essa expectoração que não me deixa?

Assim funciona um hipocondríaco (o masculino da histeria), procurando no corpo, no corpo físico, o que não consegue tornar simbólico. O que não consegue processar a ponto de produzir algo com o que quer, por isso procura no corpo, como se fosse um mapa de interrogações, como se estivesse ao alcance do médico, não dele, mas do médico.

O médico lhe diz – não há nada – ele não suporta, não acredita no que o profissional diz, existe pra ele uma certeza. Ele sabe que algo está escondido, que algo não está sendo trabalhado e continua investigando, dentro de seis meses lá estará Raimundo novamente.

Fosse uma mulher, nossa personagem, chamaríamos de histérica. Por que histérica?

A histeria foi resultado de um encontro de Freud com suas pacientes. Encontro por que Freud realmente as encontrou, encontrou-se com isso que fala por outras vias no corpo de todos nós. O que as pacientes queriam ao consultá-lo é que fossem ouvidas. Pediam a Freud – doutor me deixa falar, escuta os sonhos que tive, quero contar, me escuta doutor.

Qual o drama da histérica?

O drama da histérica é não identificar seu próprio desejo. Confunde-se com o desejo do outro, não consegue perceber que se quer algo é por que ela deseja. Por instantes parece que deseja o que está fazendo, porém, logo depois, lhe surge a dúvida, lhe parece que está tomando tal atitude por que alguém a forçou a isso. Como se não conseguisse suportar que foi ela mesma quem quis ou fez tal escolha. Chega um momento no qual surge uma frase do tipo – não sei mais quem eu sou, por que estou fazendo isso? Esse tipo de frase - não sei mais quem sou – soa como uma pergunta pela sua sexualidade. Sou homem ou mulher? Esse é o jogo da dúvida.

O que joga na histeria é a construção do sujeito, do psiquismo do sujeito no momento primitivo. Lá quando pequena, quando a criança olha para a mãe e vê na mãe um ser inteiro, linda, completa, plena, em que todas as suas vontades são satisfeitas pela mãe, e que essa está lá para salvá-la, para completá-la em sua conquista. Nesse momento a criança estabelece uma relação com essa imagem que vê.

É aí que a histérica se perde. Pois que todos temos esse momento de construção a partir da imagem do outro, isso é fato. É constituinte pra todos nós, todos passamos pela construção a partir da imagem.

Agora entramos na imagem. O que o Raimundo procura? Uma imagem que diga dele, vai até o médico pedindo uma radiografia que fale dele.

A imagem nos faz mergulhar naquilo que vemos. Uma imagem é a visão de algo pronto. A imagem é uma estrutura fechada, com bordas, com movimento próprio. Nessa imagem que nos toma por inteiro é que se dá essa relação pela qual a histérica se envolve e procura lá o próprio desejo - como se estivesse na imagem.

Façamos uma comparação com o jogo de imagens feito pela publicidade. O interessante na publicidade é construir uma imagem forte e marcante, que cause impacto e gere desejo. Para gerar desejo o que é feito? É construída uma imagem de desejo, onde aquele que está usando tal produto desempenha uma posição desejosa com o produto. Para que? Para que o que olhe também queira o desejo. Não é o produto que o consumidor vai buscar – é o desejo que está explícito. É lá onde o outro deseja que está o encontro. É lá onde o outro mostra a satisfação com a escolha que fez que será desejado.
barbara corsetti
A Parte II de "A Idade de Cristo", acompanhada de "Leitura da Psicoanalista", prossegue na próxima segunda-feira. Esperamos seus comentários!

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