segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

HISTÓRIAS CERO

(Francisco de Goya, Guerra)

O PENSIONATO
por Eliane Marques
noite 2

Inspirada no martírio enregelado e careca à que me havia submetido o dia anterior tomei meu café do amanhã no grande salão de refeições do pensionato feito uma salomé mirando sua cabeça cortada. Na geladeira não havia nenhum alimento com o rótulo “meu nome” e decidi me apropriar de uma caixa de leite órfã que exigia adoção ou podridão imediata. Durante muitos anos andei naquele labirinto de quartos e corredores com o peso da tristeza sentada nos ombros. Apenas hoje soube que parte daquele tempo foi sonho. E fico de novo triste, afinal não era preciso servir de cadeirinha para uma senhora antiga e carrancuda, padecente do mau hábito de arrotos diurnos.

noite 3

Com seu andar de Maria Madalena em fuga para Inglaterra a freira-chefe se aproximou do banquete líquido do qual eu me deliciava. Sentou-se na cadeira derrotada e muda (a cadeira). A língua se demorou na boca para me perguntar se não queria ser como ela, quer dizer, noiva de cristo. Algo se retorceu em mim. Há tempos havia encontrado semelhança entre mim e aquela mulher da golinha e de olhos azuis que eu via nos retratos. Sim, Anastácia. Anagilda era o nome usado por minha avó. De comum entre as duas havia a história de uma ana-crava. No caso da “abuela”, sua mãe fora fugitiva: havia se voltado contra a proprietária com um ferro de passar roupas à brasa (com pregos). Foi a primeira ferricida da família.

Nenhum comentário: