quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

HISTÓRIAS CERO





O PENSIONATO

(por Eliane Marques)


noite 5


O pai não a quis. A mãe morrera de parto. Minha avó e o marido I, na época, estavam noivos. A bisavó, aquela da revolta do ferro em brasa com pregos, considerou escandaloso casal ainda não-casado adotar filha grande. Então resolveu tomar a “duas vezes órfã” a seus cuidados. Fermina, agora adotada pela "abuela já em santo matrimônio", fora mandada a um internato em Montevidéu, no Uruguai. Dizem por que impossível, por que não se podia com ela, que tornava a vida de minha avó um inferno. A do marido I não, por que na época a morte já lhe chegara escondida em garrafas de álcool. Do internato, a regra era que a moça fosse liberada apenas quando do casamento. Não sei como se lhe apresentou o marido, um padeiro - proibia-se a saída das dependências da Casa. Apenas sei que, além de padeiro e negro, possuía uma bicicleta. Sei também que, no primeiro dia após as núpcias, ao cruzar a linha férrea pedalando o veículo o trem lhe pisoteou o corpo magro. Tudo rápido. Tudo uma correria de morte. Um padeiro negro, atropelado por um trem negro, nos trilhos vermelhos de uma Montevidéu negra. Não sei se minha tia sofreu. Sei que se tornou mãe de santo, que foi dona de uma sessão de candonblé e que criou vários filhos postiços. Postiços é mentira. Aqueles Rosês e Antonhos e Rauls de minha infância eram filhos dela e do meu tio João Batista, nascido do matrimônio da “abuela” com o marido I. Não, não se trata de incesto. Dizem que Juan Bautista era impossível, que não se podia com ele. Tanto que se exilou em Montevidéu e lá fez 12 filhos com uma louca. Feita a prole, presenteou-a a minha tia. Não sei se a loucura da mulher, uma tal Maria, não fora provocada pela Fermina. Dizem que a tia era má, que carregava bonecas para feitiços em sua mala de viagem a Sant’Ana do Livramento. A mim, foram benéficas tais bruxarias - a chegada de tia Fermina - voando num cabo de vassoura - enfeitou minha infância com elefantes cor de rosa que até hoje guardo no guarda-roupa dos mortos que insistem em me viver.

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