sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

ERA UMA VEZ...

O PENSIONATO
(de Eliane Marques)
noite 6

Era de um barro amarelo trôpego, como se a queda lhe esperasse na porta do passo. Os ossos largos lutavam para fugir da escravidão do seu corpo magro pela ação contínua da antiguidade. De sua cabeça lunar e minguante, coberta de fiozinhos de cobre enrolados, descia, rápida, uma corrente elétrica que lhe acendia o palheiro de fumo em ramo ou, ás vezes, de fumo desfiado, comprado em algum boteco apinhado de contas impagas da gente do lugar. O Tuga socava o tabaco em papéis queixosos, na verdade, folhas dos cadernos cansados da desatenção dos netos. Manufaturava desse jeito o oloroso cigarro com o qual eu me embebia quando, ao visitá-lo, tinha de lhe tomar a bênção por ordem de meu pai. Devia-se beijar a mão que resistia em se elevar do braço. Me recuperava da comoção do ato quase religioso durante os 30 dias antecedentes à próxima visita. Na véspera assinalada não dormia: imaginava a mão de Melquíades, saudosa de seu velho clarinete, que teria de beijar.
Enquanto a perversidade da vida ainda não lhe havia salgado os dedos, o Tuga sequestrava os netos da rotina seca e séria dos pais. O avô e a gangue marrom esperavam a aurora na porta da casa amadeirada que logo receberia os pés lentos e pesados de minha avó. Os olhos da “abuela”, de um amor triste e açucarado, descansavam a faina da madrugada com pastéis recheados de céu.
No bairro da Carolina, lugar chamado Tavinha, morava um riozinho que, de vergonha de sua miúdez, se escondia debaixo da saia de uma ponte, a poucas quadras de onde meu avô deixara em pranto a aurora. Alheio ao alvoroço dos metralhas e seus caniços, o Tuga mergulhava o dedo (puro, simples e sem escafandro) no rio. Enquanto os netos exibiam dos anzóis as traíras, jundiás, carás ...ele tirava do miúdo curso d’água o dedo enfeitado, na ponta, com um bicho macilento, metade cobra e metade peixe. Era um muçum o que o “abuelo” pescava. E não mordia? Não, esse bicho era banguela.
O “abuelo” sofria de um irmão, batizado de Vando. O Vando não pescava com os dedos peixes desdentados. Preferia usá-los para pescar copos de cachaça em algum boteco do Cerro do Marco.

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