sábado, 31 de janeiro de 2009

DA CADEIRA DO SONHO





TAXICODEPENDÊNCIA

(de Barbara Corsetti)

O fato é que pegar um táxi é assim como acordar, necessário e incerto.
Naquele dia, Ane e eu estávamos completamente delirantes. Dentro de um guarda-chuvas pequeno, o mais comum das ruas, caminhávamos inventando frases e tiradas, uma da outra. Havíamos escolhido um filme pra assistir, um filme cujo nome sumira da mente. Depois da pesquisa numa lista, a única dica – era brasileiro. O filme desejado era “Lavoura Arcaica”, e, tive agora mesmo um... claro, ele tem tudo pra gerar mil brancos em qualquer cidadão. A relação arcaica de uma família que vive sob frases malditas do tipo – tudo pode acontecer entre nós, podemos confiar apenas em nós, a família é o mais importante na vida. A desgraça de um ser é não sair dos limites familiares, é não construir sua própria visão do mundo. Bem, “Lavoura” veio naquele dia por que, por que...por alguma questão pra nós. O fato mesmo de estar entorpecida por Nelson Rodrigues, toda a tremulação dos seus personagens, suas trágicas escaras do mundo familiar, incesto, traição, fidelidade, assassinatos, desejos e as pernas varizentas das velhas. Chovia muito, era noite, íamos a um aniversário, num restaurante chinês. Pensando agora, era tudo certo pra fechar o dia, depois de uma série de alternados ou alterados movimentos. Depois de horas e horas trabalhando sobre o projeto de nossos sonhos, claro, estávamos excitadíssimas.



1º táxi – na parada, enfileirados diversos carros, quase sempre sem os seus respectivos motoristas. Nosso táxi, porém, estava estacionado exatamente na frente de uma árvore, quero dizer, a porta por onde entraríamos, debaixo daquela chuva, estava na frente da árvore. Não podíamos entrar – digo pro taxista – alguém vem dirigir esse táxi?vão entrando aí! Vão entrando aí? – nós duas nos olhamos e rimos né, a única coisa que dava pra fazer naquela hora – não dá pra entrar moço! Se vira! E ele também se vira e vai pra outro carro conversar sei lá o que.

2º táxi – rindo e falando mal do cara, fomos à esquina que ficava um pouco além do táxi interrompido, interrompido por uma árvore, interrompido por um taxista logicamente interrompido. Estico o braço. Beleza... pára o nosso táxi 2. Adoro entrar em táxis cheirosos e espaçosos. Claro que contamos a história acontecida. O nosso novo motorista, muito simpático, e profissional, nos apóia e diz que é uma barbaridade o que fazem alguns. Ane e eu seguimos na conversa delirante e o taxista tenta, todo o tempo, entrar na conversa. Claro que ninguém sabe com quem está falando quando a conversa é solta pra todas as galáxias. Aí eu pergunto por aonde ele está indo, por que havia parado na esquina sinalizando entrar para um lado proibido. Aviso imediatamente que ele se cuide: Ane é totalmente rigorosa com as “regras”, tá sempre procurando uma regra pra cumprir, só atravessa a rua em faixa de segurança. Quantas vezes já tivemos que caminhar uma quadra a mais por causa disso. O cara simplesmente responde – vou dobrar aqui mesmo, não tem problema, essa rua já foi mão dupla, um dia a mais não dá nada. Viro pra Ane e pergunto – que lei ele está descumprindo? Desde aí Ane passou a discursar sobre o sistema das leis e me diz – esse é um crime anão. Crime anão??? Vê só o nome dado pro tal crime do cara 2. Segundo Ane os crimes estão classificados como hediondos e culposos (dá vontade de acrescentar os gozosos), o fato é que nesse caso, quando o crime é qualquer coisa como algo não culposo nem hediondo, ele não deixa de ser um crime, ele passa a ser um crime anão. Ah não, essa é muito boa, então, na real, tudo pode ser crime, um anão pode estar sempre a nossa volta. Ok, depois dessa fomos deixadas no restaurante do aniversário.

3º táxi – na saída do restaurante... isso parece nome de filme de terror. Certo, o aniversário estava muito legal, rimos muito, porém mais um táxi nos aguardava e bem direitinho. Lá fui eu espichar o braço, éramos 4, 3 iriam em 1 táxi e 1 no outro. O primeiro que parou era legal, o carro novinho. Quem fosse pra casa (ou não), iria sozinha naquele, logo passaria outro. Feito, o outro parou logo atrás. Nada contra carro velho, mas que dá uma impressão estranha dá, e senti a maldade. Entra uma, entra outra, entro eu, fecho a porta. Ficamos sentadas atrás, Ane e eu. O fato é que o táxi exalava um cheiro fortíssimo de xixi, sim, alguém tinha se libertado ali atrás, no banco onde estávamos sentadas. Olhei pro motorista pelo retrovisor e aquele cheiro infernal e aquela cara esquisita dele, aiaiai. Acontece que o imaginário voou e não conseguia mais olhar pra aquela cara, nem suportar aquele cheiro maldito. Desceu a pessoa da frente. A chuva continuava: os vidros não abriam. Havíamos saído de um jantar e vai saber o que acontecera naqueles bancos. O jeito foi descer do mictório ambulante. Partimos, Ane e eu, para mais um táxi.

Um comentário:

Val Janissek disse...

Barbara querida, Nelson Rodrigues q se cuide, pois a tua versão de "A vida como ela é" está , no mínimo, prosaica. Adoro teus textos. bjs