terça-feira, 3 de março de 2009

verso b

A MORTE DO HOMEM
(Miguel Oscar Menassa, 1976)



É outra vez de noite
e em geral
a casa dorme.

Uma voz na rádio
diz últimas palavras.
Me entretenho com a fumaça
e me ocorrem mil fantasias
e nenhuma tem a ver
com deitar-me
tranquilamente na cama
e dormir.

Entre tantos papéis
terminarei sendo um escritor
e fixo meu olhar na distância
e deixo que a história do homem
irrompa
com a violência de sua sina
minha noite.

Acendo cigarros aos montes
um atrás do outro como se fossem
cintilantes granadas contra os opressores.

Há milhões de anos
o homem vive de joelhos.

As granadas estouram em meu rosto.

Primitivas presenças
povoam minha noite de selvagens ritos.

Cerimônias onde a morte
sempre é uma canção
sublime e misteriosa.
Bestas indomáveis
semelhantes ao homem
pela torpeza
de seus movimentos
dançam ao meu redor
iracundos
silvestres.

Num mau castelhano
me dizem que seu chefe
quer falar comigo.

Sentado em minha cama escrevendo
peço que deixem de rugir tambores
que cesse a dança
que me deixem escrever este poema.

O homem tem fome e sede há milênios.

Somos esse homem faminto e sedento poeta
canta conosco:
Viemos da Mesopotâmia

e do Caribe
e buscando a perfeição chegamos
até os mundos que se escondem
por cima do céu
e não encontramos nada.

Sempre há um homem que tem fome.
Sempre há um homem que morre de sede.

Aqui mesmo poeta
em tua casa
aninham o opressor e o oprimido.

Sentado sobre minha cama escrevendo
digo aos selvagens
que já é avançado da noite
que por favor deixem de dançar
que necessito
fundir-me entre as letras
minha fome
minha única sede.

Deixaram de dançar
e quem se destacava
por sua tremenda humanidade
me fulminou com seu olhar.

Quem é mais cruel?
Poeta
Quem mais selvagem?
Quem morre guerreando
por um pedaço de pão
ou quem não morre nunca.
Quem produzirá o extermínio
poeta.
Minhas armas ou teus versos.

E agora poeta deixa a pluma
sai a andar e pensa.
Sentado sobre minha cama
escrevendo
digo ao selvagem que
não quero ir-me de minha peça
e que sempre soube que pensar
não era necessário e que desejo
é a última vez que digo
seguir escrevendo este poema.

Antes de continuar me detenho
na inteligência do selvagem:
fala bem e enquanto fala
deixa escapar entre as palavras
o alento
para que tudo soe vital
dilacerante.

Eu sou o homem
grita a besta encadeada
e tu poeta és o homem?
Escrever para quem
onde os amigos
e onde os inimigos.

Diz-me poeta
teu canto
necessita do futuro
para ser?
Esse poema que escreves
contra tudo
a quem servirá.

Vamos ver poeta um verso
que me diga agora mesmo
o que é o homem?

Sentado sobre minha cama escrevendo
me dou conta
que a inteligência do selvagem
terminará queimando
todos meus papéis escritos
nessa fogueira
que foram construindo
a meu redor
suas palavras.

Deixo de escrever
olho fixamente seus olhos
e murmuro suas próprias palavras
num só verso um homem
num só verso um homem
e me decido a escrever esse verso.

Sustento com minha mirada
a mirada do selvagem
e com rápidos movimentos
tomo a metralhadora
e disparo várias rajadas
sobre o corpo do selvagem
que com os olhos desorbitados
pelo assombro
cai
para morrer e desaparecer.

Sentado sobre minha cama escrevo agora
com a segurança
de quem chegou ao fim:

Um poeta assassinou seu homem
para escrever este poema
e isso
é um homem.

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