quarta-feira, 4 de março de 2009

quarta-com-cortázar


Facetas de Morelli, seu lado Boulevard et Pécuchet, seu lado compilador de almanaque literário (em dada ocasião chama de almanaque o conjunto de sua obra).
Gostaria de esboçar certas idéias, mas é incapaz de fazê-lo. Os desenhos que aparecem à margem das suas notas são péssimos. Repetição obsessiva de uma espiral trêmula, com um ritmo semelhante ao das que adornam a stupa de Sanchi.
Projeta um dos muitos finais de seu livro inacabado e deixa uma diagramação. A página contém uma só frase: “No fundo, já sabia que não se pode ir mais além, porque não existe”. A frase repete-se ao longo de toda a página, dando a impressão de um muro, de um impedimento. Não tem ponto, nem vírgulas, nem margens. De fato, um muro de palavras ilustrando o sentido da frase, o choque contra uma barreira por trás da qual nada existe. Todavia, embaixo, à direita, numa das frases, falta a palavra o. Um olho sensível depressa pode descobrir o vazio entre os tijolos, a luz que passa.


(- 149)

(de Julio Cortázar, do livro "O Jogo de Amarelinha", Círculo do livro S.A.)

Nenhum comentário: