sábado, 7 de março de 2009

era uma vez


O CARNICEIRO

(de Eliane Marques)

O clarinete do Tuga havia sido presente de sua mãe. Aprendera a manejar o instrumento com um velho, tocador de requinte. O “Pobre Homem”, o “Casaca Branca” e o Duque eram seus companheiros de madrugada nos bailes do fim de mundo daquela fronteira do Brasil com o Uruguai. Eu nasci numa linha de fim do mundo. Hoje me dou conta dessa catástrofe e me apavoro. Bem, o trabalho do abuelo ia além do clarinete. A fim de colaborar com o sustento da família, trabalhava como serrador no Frigorífico da cidade que, anos depois, fechou deixando vários padecentes do desemprego, de alguma doença ou da irrealidade da vida. Minha mãe sofria do palpite de que desde sempre o Tuga padecera desse mal, ao qual prefiro chamar de “complexo da unitariedade”, pois quando recebia seu salário, o abuelo tratava de comprar, imediatamente, 1 fardo de apenas 1 dos alimentos passíveis de serem consumidos por humanos. Não passava nada se fosse a vez do feijão ou da massa. Mas na hipótese de exclusividade do açúcar ou pior, do sal, minha mãe atravessava a Carolina a pé, com meu irmão no carrinho de bebê, e rogava ajuda à outra avó, com morada na subida do Grêmio Santanense, que perguntava, apenas, se o marido da filha portava a mesma doença do sogro, visto seu sumiço por dias ou semanas sem que ninguém soubesse dele.
Nem sempre fora assim. Certa feita, o Tuga guardou um pacote cheiroso em cima do armário da cozinha até a chegada da minha avó, que saía muito tarde do colégio onde labutava. O meu pai, querendo saber do que se tratava, aproximou uma cadeira para subir no móvel e, com as mãos cegas, pôs-se a vasculhar a parte superior do armário entulhado de objetos. Para o seu berreiro curado apenas com açúcar, o móvel caiu por cima dele que, além de ter o braço quebrado, viu um bezerrinho pelado sair correndo porta a fora.
Na verdade, quando meus tios e pai estavam na infância era comum o abuelo ser esperado por eles. Os pezinhos saltitavam de barro e de alegria ao vê-lo dobrar a esquina da Rua Brasília, com seu avental berrando sangue e, bem enrolado, já cozinhando dentro de um tecido debaixo do braço, um bezerrinho para o jantar a ser preparado pela abuela. O carniceiro negro, ao observar que a próxima vaca na fila do esquartejamento estava prenha, tratava logo de fazer parir o bichinho que, já morto, faria a alegria dos filhos. E vem a lua de luanda para iluminar a rua.

Nenhum comentário: