sexta-feira, 24 de julho de 2009

era uma vez...

O OVO DO PROFETA

José fizera todo o tipo de serviços. Vendera pastéis, pães, doces, os poucos eletrodomésticos da casa, limpara salões de baile e ricas residências, pintara de vermelho, a gosto do cliente, rosas que, de nascimento, eram brancas... Dormira com a mulher do próximo e não amara a deus. Mas o seu trabalho preferido fora o de tamboreiro nas festas de religião. Gostava de tocar para os orixás. Tivera um apelido que herdara do pai, o seu João, primeiro homem ovo que aquela fronteira de tantas guerras havia conhecido. Seu João, depois de abandonar a Brigada Militar quando alcançado o cargo de “1° clarim da alvorada”, resolvera enveredar para outros negócios. Decidira ser comerciante de ovos. Certa feita, cansado da labuta, fora ao Clube Farroupilha ouvir um pouco de música. Sempre preocupado com as vendas, abrigara alguns ovos nos bolsos do casaco, com outros, pagara o ingresso para entrar no local, com outros preparara um jantar para os amigos e, das sobras, ainda fizera vistas grossas aos pequenos ladrões. Bem, o filho do Ovo, por essas coisas que ninguém sabe, ficou também conhecido como Ovo.
No leito de morte o único desejo do Ovo (filho) fora o de tomar um suco de maracujá que sua esposa, Madalena, demorara três dias para fazer. Por esses três dias também se alongara a vida do sedento.
Na última data da contagem, enquanto ele agonizava num quarto que ficava bem de frente às escadarias do terceiro andar do Hospital Santa Casa, caiu de joelhos, e com as mãos levantadas em direção aos céus, um homem magro e amarelo que, com voz de eco, gritava:
- Eu não acredito que meu irmão está nesse leito de morte. Eu não acredito!!! Te levanta daí, desce desse leito de morte meu irmão!
Maria reconheceu naquele discurso a voz de seu filho-Outro, Anastácio, que logo após ter tomado conhecimento da gravidade da doença do Ovo, correra para fazer algo, pois nenhum médico o fizera.
- Te levanta agora desse leito de trevas meu irmão. Tu podes, ainda não é chegada tua hora!
A mãe de José e também do Outro, irritada, exigia que o recente profeta desse fim àquele escândalo.
- Enfermeiro, tira esse traste daí!!
Mas esse era um milagre que não podia ser atendido por que Anastácio, agora, rezava em altos brados, arrastando-se de joelhos pelo corredor.
_Vamos meu irmão, reza comigo! Pai nosso que caístes do céu, permanecei no buraco onde estás que nós da terra tomaremos conta do céu...
Os parentes graves que acompanhavam os enfermos não entendiam nada do que ocorria – alguns quase mortos levantavam dos leitos e lamentavam nos ouvidos do profeta a dor por não terem acertado os números da loteria. Outros, menos graves, também não entendiam nada, mas abandonavam os pacientes para, num canto do corredor, se matarem de rir.
O Ovo, indiferente à presença de qualquer entidade salvadora, tomou o último gole de suco de maracujá e morreu enquanto o Outro continuou a profetizar até a retirada do seu corpo do quarto de hospital. Não, não a retirada do Ovo morto, mas do corpo do profeta que ninguém suportava mais.

Eliane Marques


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