sexta-feira, 3 de julho de 2009

era uma vez...

O MUSEO DE ÉDIPO

Subiu a Rua Barão do Triunfo com seu largo passo negro e pouco engraxado por algum mendigo da praça central da cidade a quem gostava de fazer favores. A calça branca, justa, parecia engomada por uma tia caprichosa, e a camisa social, azul celeste, brilhosa, cheirava ao John Travolta dos Embalos de Sábado à Noite.
A cabeça baixa e zonza já denunciava o esquecimento de alguma informação desnecessária para a vida.
Lentamente, como quem vem de uma guerra, fez as pernas marcharem pelas escadarias da casa. Alcançado o ponto máximo até onde seu espírito pudesse alcançar – na beirada da porta – se postou, hirto, como quem bate continência, de modo a separar a entrada da sala do resto do mundo. Com seu corpo de mãos grandes na cintura e voz forte, situado no topo de uma forte dor, inesperadamente, gritou:
- Mas o que é isso? O cara chega cansado, olha para os lados e se depara com esse museu atirado nos cantos, isso não é coisa que se faça! Mas Maria, como é que tu me aprontas uma maldade dessas. Eu sou teu irmão ou a minha mãe me jogou na lata de lixo e essa aí me juntou.
“Essa aí” era a Idalina que, com boca grave e testa envergonhada, olhava em lamentação o filho, enquanto todos silenciavam da alegria que até então se processava:
- Mas o que houve José, por que isso?
- Eu é que pergunto por que estão fazendo isso comigo. Eu venho do trabalho. Carreguei rios e mares o dia inteiro. Estou cansado e desejo algo agradável. E, e ... aí encontro esse arcaísmo jogado num sofá de canto. Mas não pode ser que o sujeito não tenha direito de sonhar em paz em seu próprio lar.
- Mas por que tu não entraste pelos fundos e não foste para tua casa. José, essa casa aqui não é tua!
- Mas como não é? É sim. Eu nasci da tua barriga e, desde que tu aqui estejas, essa casa também é minha.
- Mas vai embora José, pelo amor de Deus!
- Essa coisa é que tem que ir embora. Sai daqui agora!
A Maria e a Madalena já haviam abandonado a sala onde antes conversavam com Idalina e outras amigas sobre um baile que iria ocorrer naquele mesmo dia no clube dos negros da cidade, o Farroupilha. José, na sua frustração, dançava com as palavras de ira:
- Maria, arrasta esse museu da sala!
De súbito, se ouve outra voz, fraca, medrosa, pronunciada com grande esforço.
- É comigo que tu está falando?
- É contigo sim, então, vê se pode, um cara trabalhador como eu tem direito de chegar à sua casa e ver um pouco de beleza e não um estrupício velho sentado na sala. E ainda de pernas cruzadas e varizentas. Maria, por que tu fizeste isso comigo?
- Cala a boca José! Era a Idalina que gritava.
- Vocês cometem esse crime contra mim, um crime contra os direitos humanos, artigo 4.1 do Pacto de San Jose da Costa Rica, lhes pego em flagrante delito e não querem que eu me rebele. Querem que eu engula essa falta de estética como se fosse aspirina para dor de cabeça? Não vou calar a boca, já perdi a cabeça de tanta alergia à feiúra. Tirem essa feia, esse símbolo do horror, essa mulher pavorosa e velha daqui. Me tirem esse museu da sala que suas rugas já atravessam minhas pupilas e me cegam como Édipo.
Enquanto as Outras riam no cômodo ao lado, a ultrajada Helena prometia ao José voltar no dia seguinte com a tesoura mais afiada que encontrasse no mercado, apenas para fazer a gentileza de lhe curar a cegueira visto que, como enfermeira, tinha grande prática em cirurgias de olho, e sem anestesia.
Eliane Marques

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