segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

no divã, com Nelson


A IDADE DE CRISTO

PARTE FINAL

O mártir

Nem o Asdrúbal havia entendido, nem os companheiros. Raimundo foi levado para um canto. Explicou, baixo e iluminado:

_ Vocês são burros! Vocês não entendem! Prestem atenção: o Asdrúbal é bonito, tal e coisa, mas é um débil mental. Eu soltei a piada. Com a continuação, o efeito vai aumentando.

Os outros se entreolham. Raimundo pede a colaboração de todos:
_ Para o negócio dar certo, cem por cento, preciso que vocês ajudem. Vocês têm que me ajudar.

A partir de então, aquele Apolo de escritório (bonito demais para um homem) começou a sofrer. O despeito de todos os homens da firma estava encarniçado contra ele. Esfregando as mãos, numa satisfação sombria, o Raimundo sussurrava para um e outro que o Asdrúbal estava já em desintegração. Dizia: - “Um crime perfeito. Com uma piada, vou matar um cara!” Parecia-lhe que o nosso código, ou qualquer código, é tão sem imaginação que jamais cogitou da piada criminosa. O fato é que, a toda hora, o Asdrúbal recebia bilhetes, cartas anônimas. Alta madrugada, em casa, o telefone batia. Uma voz qualquer dizia-lhe:

_ Com tua idade, Cristo já estava morto e enterrado! E você?

Era a piada do Raimundo, que o perseguia por toda a parte. Aquilo espalhou-se. Amigos, simples conhecidos batiam-lhe nas costas:

_ Realmente, você não fez nada. Até agora não fez nada. Com a tua idade, Cristo...

Outro qualquer teria aceito a piada como tal. Mas o Raimundo julgava-o um pobre de espírito. Jogava com a ingenuidade do companheiro. E, todas as tardes, a cena se repetia. Raimundo saia com o Asdrúbal e, na rua, começava:

_ Cuidado, rapaz! Você ainda não fez nada! Que é que você fez?

Crivava-o de perguntas curtas e incisivas: - “Você fez a camisa que veste? O sapato? Está vendo aquele edifício? Você fez algum prédio? Não. Não fez nada. Pois olha! Na tua idade, ou menos, Cristo foi crucificado!” A principio era só o Raimundo. Depois todos o imitaram. O Asdrúbal não tinha um segundo de sossego em lugar nenhum. Aquela piada, meio ou totalmente imbecil despertava nos outros um élan diabólico. Um dia, uns dez companheiros, inclusive o Raimundo, levaram o Asdrúbal para um bar próximo. Lá, bebendo e comendo batatinhas salgadas, passaram umas duas horas repetindo: “Aos 33 anos, Cristo já estava enterrado, e você?” Batiam-lhe nas costas: - “Você não fez nada! Nada!” ele não dizia uma palavra. Saturou-se da pilhéria. Súbito, ergueu-se:

_ Eu não fiz nada! Mas agora, neste momento, vou fazer alguma coisa!

E, ali, diante dos companheiros, petrificados, puxa o revólver e vara de balas o autor da piada.

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PALAVRA DA PSICOANALISTA

O que Asdrúbal não sabia é que todo o “élan diabólico” que despertava em cada um que repetia tal frase criada por Raimundo era justamente o lado perverso e cru do humano.

Podemos considerar dois lados na frase plantada pelo Raimundo. O próprio personagem sugere com a frase – Com uma piada vou matar um cara! – Ai está o desejo de Raimundo.

Lembremos que no princípio da história, Raimundo dizia em frente ao espelho – porque não meto uma bala nessa cara? Essa era sua verdade, esse desejo de acabar com o que via em sua frente, em seu próprio sujeito. Era insuportável o que acreditava ver em si.

A busca por encontrar a prova de que a morte estava próxima caso descobrisse uma doença em seu pulmão, quando então poderia se entregar para a morte, estava em cena.

Porém, o que nosso personagem não supõe é que existe uma verdade plantada nele, que ele não conseguia nem pensar em trabalhar, ou seja, uma verdade que ela não queria abandonar.

Para a Psicoanálise a resistência que o sujeito monta para não chegar em um determinado ponto de dificuldade é a maneira encontrada pelo psiquismo de não deixar de funcionar daquele determinado jeito. Teria então que abandonar algo muito marcado em si. Raimundo não queria nem saber do que lhe causava tanta ojeriza de si mesmo. Poderia ser uma frase que trazia dos pais, uma verdade já vivida por eles e que carregava em sua vida, uma repetição de algo que alguém desejou para ele, ou que viu alguém realizando.

A construção de uma frase que vai matar o outro é tão forte quanto um tiro, tão forte quanto uma lei. Ela pode construir ou destruir um sujeito, conforme o que escuta e associa. Todos os significantes marcados na vida de Raimundo estavam no dito – Você não fez nada. E foi essa afirmação que Raimundo escolheu para Asdrúbal. A imagem de Asdrúbal permitiu a Raimundo que tal frase fosse destinada a ele. O que Raimundo viu em Asdrúbal está marcado ali, inconscientemente.

É o inconsciente jogando para todos os lados nessa frase.

Podemos perguntar porque Asdrúbal acreditou nela. Podemos supor que o que fez Asdrúbal foi realizá-la. Até não saber o porquê da frase direcionada para si, Asdrúbal não conseguia acreditar que ela estava sendo dita para ele. No instante em que se apropriou dela fez o que lhe coube, o que lhe veio, o que supôs ser pedido para ele.

O desejo de morte já estava em Raimundo. Asdrúbal apenas realizou o que Raimundo lhe pedia.

Assim o inconsciente realiza.


Até a próxima.

Barbara Corsetti

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