sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

era uma vez ...

O BARÃO
(de Eliane Marques)

Sua cabeça enorme incomodava a tranquilidade monótona das nuvens. Se quisesse, poderia usar a barba rala, sempre na espera do corte, para varrer o pó das estrelas, qual a eternidade de sua altura. Se quisesse, ainda, poderia fazer bom uso das mãos grossas e pesadas para lixar, em segundos, os portões de ferro do céu. Escolheu não fazer nada. Escolheu fazer nada. Eu detestava beijá-lo, havia de ficar na porta dos pés para alcançar suas bochechas azedas, enquanto ele se vergava até o chão para alcançar as minhas. Aquele gigante adensava o meu silêncio de menina comportada em visita à casa da tia professora. De sua garganta de “sete quedas” descia uma voz vulcânica, uma voz javélica a falar detrás da sarça ardente qualquer coisa inaudível. Era insuportável o tilintar oco que soprava ausente a fumaça de seu cigarro.
Eu detestava o “abrir de porta” sonolento da dona da casa, minha tia, o seu “fazer sala” distraído que preferia àquelas visitas o "assistir à televisão" ou o "ficar fechada" em seu quarto contanto as pedras do jogo de amarelinha de seus pesadelos; eu detestava o desagrado dos meus primos, gigantes como o pai, que estavam constantemente em debandada quando chegávamos. Não sei por que inventavam passeios tão desagradáveis quanto me era a companhia dos meus próprios pais. Eu me via incivilizada, a matar toda aquela gente, a comer seus cérebros inúteis com katchup e, ao final, refugiada no calor da rua, me via a saborear a sobremesa de seus enterros com bolo de chocolate.
O Barão nascera em São Sebastião e por lá conhecera minha tia. Ele era de uma família de origem francesa e haussá. Herdara aquela corzinha que inveja os negros e ameaça o império dos brancos. Depois do casamento, a tia Eulália, com as duas filhas pequenas, abandonou a cidade onde fora estudar e se abrigou na casa de sua irmã Eurídice. O marido viria depois.
A tia Eurídice e a abuela Herculana o esperavam fazia muito tempo. Cada viajante que atravessava a praça era espiado por elas do alto de uma janelinha tímida, no segundo andar da casa. Porém o cunhado e genro, portador de título de nobreza, se negava a descer da Maria Fumaça que uma vez por semana aportava na estação da praça, próxima à morada onde as parentas espiãs aguardavam com sincera esperança o fracasso do desembarque.
Num inverno de julho, atravessou a praça coberta de sereno, em direção à casa da Eurídice, um homem tão comprido quanto o trem que o trouxera. Carregava consigo uma sacola monstruosa, de cor suja, que lhe agarrava com firmeza às costas, como os bebês que as jejes de ganho carregavam pelas ladeiras irregulares de São Salvador. Sua chegada, com aquela bolsa, criou grande expectativa nas crianças, em torno de cinco, entre as baronesinhas e seus primos. Todas esperavam receber belos brinquedos do tio herdeiro de nobres. No dia seguinte, depois de longo sono, banho com sal grosso, e bem alimentado pela excelente comida preparada pela negrinha da casa, como se autodenominava a minha tia Eurídice, o viajante se decidiu distribuir os regalos. Dentre outros destroços, vinham cativas na bolsa, dez bonecas velhas, recolhidas de algum abandono da infância: as que tinham cabelo, haviam perdido a cabeça; as que tinham pés, tiveram roubadas as pernas; nenhuma possuía mãos e a única que falava, apenas em francês, pedia a lobotomia imediata e calva ou a peruca da abuela que roçava amarela num cabide de arame de armário. As meninas adoraram o cemitério de bonecas. A abuela e a Eurídice pensaram, em íntimo segredo, que a ilusão daquele desembarque fora tão triste quanto a falsidade do título de nobre.

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