segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

NO DIVÃ, COM NELSON



Leitores, hoje prossegue “A vida como ela é...”, segunda parte, na qual, depois da apresentação de outra face do Raimundinho, por Nelson Rodrigues, a psicoanalista Barbara Corsetti desvenda mais desse sujeito de intensas olheiras, bracinhos e canelas de Olívia Palito.

Vamos acompanhar, a saber mais da vida dos outros em nós!!!


As editoras

A IDADE DE CRISTO

PARTE 2
O outro

Trabalhava numa firma importadora. Um dia, chega e encontra, na mesa do lado, um novo companheiro. Era o Asdrúbal. Ia pela primeira vez ao trabalho e, justiça se lhe faça: - a aparência pessoal do Asdrúbal era humilhante para os demais. Maciçamente belo como um bárbaro e não se podia criar um conjunto mais deprimente de dons físicos: - um olhar de azul violento e diáfano, um perfil cinematográfico e, numa palavra, uma beleza viril, bem acabada, irretocável. O impacto, no escritório, foi violento. Houve, de um lado, o deslumbramento unânime das telefonistas; e, do outro, a secreta irritação dos homens. Quanto ao Raimundo, sua reação foi única. O esplendor do outro, aquele fulgor de Apolo, doeu-lhe na carne e na alma. Mais do que nunca sentiu-se um fraco e um miserando. E coisa curiosa! Desde o primeiro momento, odiou o novo colega com o furor impotente do raquítico e do feio. Na primeira oportunidade, cochicha para um outro feio:

_ Pavão de galinheiro!

Chamar o apolíneo Asdrúbal de “pavão de galinheiro” era uma clara injustiça. Infelizmente, há, em toda a injustiça um fundo de verdade. A figura do Asdrúbal, com o excesso de beleza e elegância, como que justificava a blague. Enquanto as mulheres deliravam, os homens rosnavam pelos cantos: “pavão de galinheiro!” Era um amargo, um neurastênico consolo. Três ou quatro dias depois, o Raimundo aparece no escritório, transfigurado:

_ Bolei uma piada genial! Uma big idéia!

Foi cercado. E, então, tossindo aqui e ali, com suas crises de falso tuberculoso, Raimundo baixa a voz:

_ Vou desmoralizar esse cara! Vocês vão ver! E olha: pareço burro, mas sou cerebral pra chuchu!

Parou para tossir e avisa:

_ Prestem atenção, suas bestas! Vejam a classe!

Pigarreia, atravessa o escritório e inclina-se sobre o novo companheiro:

_ Qual é a tua idade?

Asdrúbal ergue o olhar de um azul macio e inesquecível:

_ Trinta e quatro.

Raimundo levanta a voz. Fala para todo mundo:

_ Trinta e quatro! Que é que ele fez até agora? Que é que ele é no rol das coisas?

Interpelava os companheiros. Surpreso e inquieto. Asdrúbal não estava entendendo. (O Raimundo andava espalhando que o Apolo era “bonito e burro”) O próprio Raimundo responde a si mesmo: “Nada! Ele não fez nada!” vira-se para o belo Asdrúbal e prossegue, com uma alegre crueldade:

_ Escuta! Com 33 anos Cristo já tinha sido crucificado! E, você que tem 34 anos, e continua belo e formoso? Você não fez nada , você não faz nada!

Riu. Os outros riram, também. E o próprio Asdrúbal os imitou.
Subitamente, sério, Raimundo põe-lhe a mão no ombro:

_ Cristo fez tanto e você tão pouco! Não te envergonhas de não fazer nada, nada? Escuta! Com um ano menos do que tu, Cristo foi pendurado na cruz!

Asdrúbal olha para um e para outro. Perguntou:

_ Que piada é essa?

Sem lhe dar atenção, Raimundo dirigia-se aos demais:

_ O Asdrúbal não vive! O Asdrúbal não faz nada!

(de Nelson Rodrigues, A vida como ela é... Elas gostam de apanhar)

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PALAVRA DA PSICOANALISTA


Esse é o nosso Raimundo em ação.

Essa série de questões que se abrem para ele sobre quem é o novo colega de escritório gera o quê?
O que acontece com Raimundo?
O que vê Raimundo na figura de Asdrúbal?
Quem é o que agride? Pelo que Raimundo se sente agredido?

Vamos por partes.

O nosso feio, magro e lívido estava no médico procurando algo seu, algo que não consegue encontrar nas radiografias.

Quando vê Asdrúbal sente que aquela beleza de Apolo diz “algo ele tem”, algo ele pode, algo Raimundo vê em Asdrúbal, que o faz construir uma série de desejos lá, nessa imagem. E o que quer Raimundo então? Quer destruir a imagem que vê.

Tal imagem perfeita o incomoda, o desmonta, e, ao mesmo tempo, o intriga, o movimenta. Raimundo sofre da inveja.

Voltemos ao momento lindo de amor da criança com a mãe. Nessa época qualquer movimento da mãe em busca de algo que não seja a criança, torna-se uma tortura para o pequeno. Se a mãe estiver assistindo TV, empolgadíssima com o drama de uma novela, a criança vai perceber e tentar fazer algo para que sua mãe a olhe. Então grita, esperneia, chama, pede comida, pede atenção da mãe que se perdeu em outro desejo.

Quando a criança vê que a mãe e o pai estão de carinhos ou simplesmente conversando, o pai é o que está tirando a mãe dela, então é no pai que a criança vai destinar seu desejo de destruição. Vai querer tirar o pai da mãe, ou melhor, tirar a mãe do pai. Não consegue suportar que mãe possa estar querendo outra coisa senão ela. Não consegue suportar que a mãe deseja. Como pode? Estávamos tão bem assim juntinhos. Como pode querer outra coisa?
E se a mãe mantém sua atividade, mantém o olhar na novela, mantém a conversa com o pai, mantém essa distância, a distância necessária para que a criança possa com outras coisas também, então a criança pode ir construindo seu espaço, e vai caindo de um lugar onde estaria apenas ela, a mãe.

O fato é que na inveja, no não suportar que o outro possa com algo, o sujeito não percebe que ele está querendo algo com aquele, e por não suportar isso, que ele próprio deseja, prefere exterminar o outro desejante de sua frente.

A beleza de Asdrúbal tornou-se para Raimundo uma obsessão. Ver a imagem de Asdrúbal que supõe tão perfeita, fez com que Raimundo não percebesse que naquele sujeito também poderiam existir dúvidas, medos, interrogações. Não, para Raimundo a beleza de Asdrúbal era significado de completo, perfeito e que provavelmente Asdrúbal sim soubesse da resposta que Raimundo tanto buscava no médico

Raimundo construiu uma frase – o que fez Asdrúbal? O que faz Asdrúbal?

Nossa pergunta poderia ser – o que fez Asdrúbal com Raimundo – o que faz a presença de Asdrúbal com Raimundo? O que gera em Raimundo?

Outro ponto da questão pode ser aberto com o que diz a psicoanalista Marcela Villavella: - “os mitos são uma forma particular de ficção que se constitui ao redor do falante, nos vestígios distorcidos, deformados das fantasias da humanidade. Mantém uma singular relação com a verdade, como componente inseparável do mito. A verdade tem estrutura de ficção e a ficção é uma construção puramente humana. Dostoievski expressa que a verdade é sempre inverossímil; para dar verossimilhança é necessário misturar um pouco de mentira.”

Nesse âmbito de mentiras o que a psicoanálise apresenta é a construção de uma vida, desde aí entra a mentira, pois qual seria a verdade? Onde estaria a grande verdade se não o que foi dito a cada um de nós enquanto crescíamos. Quando nascemos, já temos traçado um perfil, sonhos e projetos, todos trazidos dos desejos dos que nos permitem viver. Os pais desejam aos filhos o que muito desejaram para si e vão depositar sobre a criança uma série de vontades, muitas vezes adormecidas em si. Por isso a mentira para a psicoanálise é apenas uma nova versão de uma história que está para ser contada. A vida de cada um pode ser contada conforme cada um deseja que se constitua.


Barbara Corsetti

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