sexta-feira, 26 de junho de 2009

era uma vez...

ÁGUA COM FIDEO

A vida, encruzilhada de caminhos de partida; os sofrimentos, roupeiro antigo que, repleto de saias brancas e engomadas, um magro escravo de ganho carrega ladeira à cima. De menos, apenas o marido andrajoso encharcado de álcool cuja profissão é fazer do fogo amargura a lançar-se de um trapézio sobre a metade do mundo.
Das sombras que foram realidade na infância, se anuncia a peste no seu conhecido espírito de pássaro que teima em combater os muros: recolhe os cinco filhos que catam anjos numa velha catedral e os embarca, com ela, num vôo de linhas férreas – “só de ida” – para Montevidéu, morada de sua irmã, Negrinha.
Sabia fazer de tudo e falar de nada. Isso era o normal entre as negras da fronteira: lavar (as roupas fantasmas sobre as árvores do céu), cozinhar (o assassino que atira balaços em seus perseguidores), planchar (a luz cansada do andar), limpar a casa (de paredes sonolentas, frias e fofoqueiras), passar fome (e crer que as flores são berços de gigantes), cuidar de crianças (niños de oro de otros), dormir tocada pelo destino do vento, ouvir desaforos e calar, como cala a cristaleira depois que um mordomo de sangue azul se lhe guarda a falsa prataria. Com todos esses adjetivos, logo se empregou de doméstica numa casa de família. As cinco crianças passam a ser cuidadas pela Negrinha que, sendo mãe de Santo, reconhece o diabo naqueles anjinhos de barro.
A Exorcista, gorda e barriguda, se alimenta da melhor comida feita por suas filhas (de santo). Depois de se fartar e lamentar o próximo passo, arrota arroz com alho e, lentamente, seus pés de chumbo a levam à cozinha. Ela mesma prepara uma grande porção de massa com água que despeja da panela numa bandeja poeirenta. Saída do santuário da gula, manda os anjinhos se acomodarem no chão da sala, em torno dela e de joelhos, como se estivessem diante de uma grande rainha merecedora de reverências e agradecimentos por sua bondade. Depois de todos sentados, a Majestade ordena que abram a boca e, com uma grande colher de pau, tira o fideo da bandeja e, com raiva, enfia na boca das crianças. Aquela colher cheia de massa com água circula de boca em boca sem que ninguém tenha o direito natural de esfriá-la ou de mastigá-la. Apenas as frases “come, louco de fome, andá, andá, comê... comê, callate hijo da puta” são engolidas a seco. Bem, assim deve ser. As cucharradas de fideo aguado se convertem na única refeição diária dos niños hambrientos.
Depois do almoço a ordem da Mãe de Santo é para que se retirem da casa os demônios. A porta da rua é a única serventia da casa.
Aquela expulsão habitual faz mais feliz o José do que a própria Dona da Casa. Se ela manda para la puta que los parió os muertos de hambre, ele ganha a oportunidade de mostrar os seus dons artísticos no Palácio Peñarol, uma espécie de precursor dos free-shops daquela Montevidéu de plata quemada.
O show começa com cantoria, geralmente um samba, seguem-se passos de capoeira e bater de tambor. Os hermanos gostam do espetáculo e atiram moedas aos morochos que ainda improvisam sotaque carioca para elevar o cachê.
Dormir num porto, e outro porto, e outro porto. Andar com o peso das trouxas de roupa no lenço alisado, em cada passo, em cada porto, 1 covardia e 1 brutalidade, 1 pequena vida e 1 ínfima morte.
A vida com a Mãe de Santo fora mais complicada do que pensara a Idalina e suas mãos pesadas do ferro das panelas que cai sobre os filhos ao menor sinal de malcriação.
Presa do abismo em noite de cárcere, recolhe os quatro filhos dos muros leprosos da velha cidade e se refugia na casa do Gabriel, outro irmão de diáspora que mora nas proximidades do cemitério em Montevidéu.
Ele despossui 1 casa de 1 cômodo, 6 filhos pequenos, 2 pernas que tremem como cortinas que se fecham, 10 sonhos fracassados, 20 cartas de amor rasgadas, 30 cadáveres de marinheiros e 1 mulher grávida.
A vida, encruzilhada de caminhos de partida, fez de Idalina retorno de fronteira e rua tortuosa de presságio indizível, a quem se deve coroa acarvoada, nudez de céu e a gruta de candelabros onde dorme essa mulher envolta em seus descabelos.
De volta à fronteira o Cerro de Palomas lhe sorri por que dela escuta o dobrar dos vulcões e a angústia nascida do que não se pode.
Eliane Marques (com algumas adapatções de versos de Vicente Huidobro)


Nenhum comentário: