sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

SAINDO DO FORNO


hORÁCIO


Caiu no pátio entre as casas das irmãs. Depois da partida da mãe, continuou ali onde sempre estivera, num velho quarto de madeira bruta, com uma porta de frente sem porta, uma janela lateral cuja mirada enfrentava o lodo que corria feito serpente da casa principal às de fundos, e um guarda-roupa espelhado no qual se guardavam as fantasias dos parentes de antanho. À noite vestia roupas de tule amarelo e sapatos de lantejoulas douradas porque quando alguém morre aos outros não é dado seguir vivendo.

Então, sempre se estava na época de ocultar a morte. Não se tratava de obedecer ao ritmo de uma estação, até se invejava as laranjas que só nasciam no inverno. Para o sepultamento de uma tal palavra toda a estação era primavera. A morte da Negrinha fora ocultada de minha avó, a morte de minha avó fora ocultada de mim e agora a morte dele se ocultava de minha mãe, de modo que cada um, deixando-se enganar pela vida, seguia vivendo.

A Negrinha, minha mãe e ele eram irmãos e a morte, pertencente a todos, se guardava como relíquia numa caixa de madeira fabricada ao longo da ilusão da vida. Às vezes a madeira apodrecia como apodreciam as paredes do quarto e o piso inchado com o acúmulo dos mortos. Mesmo assim ele vestia o tule amarelo e as lantejoulas douradas e seguia entre o lodo das suas asas. Um dia caiu no pátio. Caiu com as mãos seguras numa árvore de laranjas-do-céu que sua mãe cultivara. Nunca fora religioso, o tombo nesse local se deveu a facilidade de carregamento do corpo, pois a árvore ficava próxima à casa da irmã mais velha que saberia suportá-lo. Era uma das mulheres da família que nunca se deixara levar pela mentira da vida, já nascera morta, pouco lhe importava a dos outros. Assim facilitava a burocracia do enterramento fazendo o que havia de ser feito, sem muita lengalenga e falsas despedidas chorosas. Essa mulher substituíra a mãe nos cuidados que o irmão nunca tivera, cuidados que desde cedo foram iguais aos de um enterramento. Dava-lhe banho, limpava-lhe o quarto onde a merda se espalhava como enfeite, cozinhava a comida que ele não comia, vestia-lhe os sapatos e lhe chamava pelo nome ao qual ele não mais atendia – horácio.

Um dia horácio caiu no pátio. E com ele foi enterrada toda a sua ridícula e amarela humanidade.

Eliane Marques

4 comentários:

Batom e poesias disse...

Vim agradecer a visita e conhecer o grupo.

gostei dos poemas atrás e especialmente este texto tão bem escrito, acerda das mentiras da vida e da morte.
Eu destaco um parágrafo que achei maravilhoso:

"Era uma das mulheres da família que nunca se deixara levar pela mentira da vida, já nascera morta, pouco lhe importava a dos outros."

Difícil é seguir vivendo...
Bjs

Fernanda Rocha Mesquita disse...

Ressalto [Era uma das mulheres da família que nunca se deixara levar pela mentira da vida, já nascera morta, pouco lhe importava a dos outros]. ... me faz lembrar um texto que escrevi[ um Homem sozinho, pode viver morto, mas aquele que viveu dando, se vai... mas nunca morre...]... gostei deste texto. Me faz ralmente sentir que...[A condição do ser humano...será sempre um mistério... por muito supostamente inteligentes que sejamos, a nossa ignorância será sempre o limite que nos impedirá de conhecer a nossa verdadeira condição humana e o verdadeiro sentido da vida.]

Grupo Cero VersoB disse...

Sim, querida Rossana,

mais fácil é a morte,
difícil é seguir vivendo!

Mas também temos boas novidades ao seguir vivendo e poetando
e trocando poesias como fazemos

é difícil, mas também é gostoso,
gracias pelo carinho à poesia,
um abraço

Grupo Cero VersoB disse...

Querida Fernanda,

sim, parece que o sentido da vida
construimos na poesia com os outros que conosco compartilham
isso que é viver...

não está previo...
será construindo,
como diz o poeta:
No há camino
se hace camino
al andar...
(Antonio Machado)
0 poeta nos aponta isso
que "só depois saberemos..."

querida, Fernanda,
um abraço,
gracias pelo carinho à poesia,