sexta-feira, 16 de outubro de 2009

LENDO OS GRANDES


NASCIMENTO DE VÊNUS


Esta manhã, depois que a noite inquieta
esmoreceu entre urros, sustos, surtos -
o mar ainda uma vez se abriu e uivou.
E quando o grito aos poucos foi cessando
e do alto o dia pálido emergente
caiu no vórtice dos peixes mudos -
o mar pariu.


Ao sol reluzem os pelos de espuma
do amplo ventre da onda, em cuja borda
surge a mulher, alva, trêmula e úmida.
E como a folha nova que estremece,
se estira e rompe aos poucos a clausura,
ela vai desvelando o corpo à brisa
e ao vento intacto da manhã.


Como luas erguem-se os joelhos claros,
résteas de nuvem soltam-se das coxas,
das pernas caem pequeninas sombras,
os pés se movem bêbados de luz,
vibram as juntas como gorgolhantes
gargantas.


Na taça da bacia jaz o corpo,
como um fruto na mão de uma criança,
o estreito cálice do umbigo encerra
tudo o que é escuro nessa clara vida.
Em baixo alteiam-se as pequenas ondas
que escorrem, incessantes, pelas ancas,
onde, de quando em quando, a espuma chove.
Porém, exposto, sem sombras, emerge,
como um maço de bétulas de abril,
quente, vazio e descoberto, o sexo.


A balança dos ombros paira, ágil,
em equilíbrio sobre o corpo ereto
que irrompe da bacia como fonte
vacilante entre os longos braços fluindo
veloz pela cascata dos cabelos.


Então bem lentamente vem o rosto:
da sombra estreita da reclinação
para a clara altitude horizontal.
Após o qual fecha-se, abrupto, o queixo.

Eis que o pescoço surge como um fluxo
de luz, ou talo, de onde a seiva sobe,
e se estiram os braços como o colo
de um cisne quando busca a ribanceira.


Então, da obscura aurora desse corpo,
ar da manhã, vem o primeiro alento.
No fio mais tênue da árvore das veias
há como que um bulício e o sangue flui
a sussurrar nas fundas galerias,
e essa brisa se expande: agora cresce
com todo o hausto sobre os peitos novos
que se intumescem de ar e a impulsionam,
e como velas côncavas de vento
levam a jovem para a praia.


Assim aportou a deusa.

Atrás dela, pisando a terra nova,
lépida, ergueram-se toda a manhã
flores e caules, quentes, perturbados,
como num beijo. E ela foi e correu.

Porém, ao meio dia, na hora mais intensa,
o mar se abriu de novo e arremeçou
no mesmo ponto o corpo de um delfim.
Morto, roxo e oco.



(RAINER MARIA RILKE IN: As Coisas e os Anjos
tradução de Augusto de Campos)

7 comentários:

Barbara disse...

Nem sei comentar isso...mas sei que saberei voltar para ler novamente e novamente e novamente...

devaneiosaovento disse...

o vento poético trouxe-me aqui, mergulhei na poesia, sensibilidade e bom gosto nas postagens.
Rainer M. RILKE, confesso que me emociona...
se me permite, deixo aqui mais um poema do grande Rilke:

Passa lento o tempo da escola e a sua angústia
com esperas, com infinitas e monótonas matérias.
Oh solidão, oh perda de tempo tão pesada...
E então, à saída, as ruas cintilam e ressoam
e nas praças as fontes jorram,
e nos jardins é tão vasto o mundo —.
E atravessar tudo isto em calções,
diferente de como os outros vão e foram —:
Oh tempo estranho, oh perda de tempo,
oh solidão.

E olhar tudo isto à distância:
homens e mulheres; homens, homens, mulheres
e crianças, tão diferentes e coloridas —;
e então uma casa, e de vez em quando um cão
e o medo surdo trocando-se pela confiança:
Oh tristeza sem sentido, oh sonho, oh medo,
Oh infindável abismo.

E então jogar: à bola e ao arco,
num jardim que manso se desvanece
e por vezes tropeçar nos crescidos,
cego e embrutecido na pressa de correr e agarrar,
mas ao entardecer, com pequenos passos tímidos,
voltar silencioso a casa, a mão agarrada com força —:
Oh compreensão cada vez mais fugaz,
Oh angústia, oh fardo!

E longas horas, junto ao grande tanque cinzento,
ajoelhar-se com um barquinho à vela;
esquecê-lo, porque com iguais
e mais lindas velas outros ainda percorrem os círculos,
e ter de pensar no pequeno rosto
pálido que no tanque parecia afogar-se — :
oh infância, oh fugazes semelhanças.
Para onde? Para onde?

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

devaneiosaovento disse...

abraços, e sejam sempre bem vindos no meu vendaval.

Manu disse...

Olá Lúcia! Ultimamente tenho sofrido com a falta de tempo, por isso só agora tive oportunidade de aqui vir e agradecer o comentário que deixou no meu blogue. Vejo que por aqui se faz um trabalho de divulgação cultural muito parecido com aquele que faço num dos meus blogues aqui de Portugal. Tentarei, dentro da disponibilidade temporal, voltar aqui com mais atenção e seguir o seu trabalho. Beijo.

Grupo Cero VersoB disse...

Gracias, Barbara,
sim... volte sempre!

gracias pela leitura e pelo comentário,

Grupo Cero VersoB disse...

Olá,
Sim, são sempre bem-vindos novos poemas...

agradecemos a contribuição poética!

Grupo Cero VersoB disse...

Olá, Manu,

Sim... o trabalho com a poesia é permanente no Grupo Cero.
Agradecemos tua participação em nosso blog.
E insistimos em dizer, como Freud já dizia, que todos humanos são poetas, pero ... há que trabalhar para que este poeta de cada um de nós desperte!!!

esse é nosso trabalho,
um forte abraço,
na poesia,