quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Apresentação do livro TE BUSCA Y TE NOMBRA de Marcela Villavella neste 05 de outubro, na Livraria Cultura em Porto Alegre



Eliane Marques e Marcela Villavella


Eliane Marques, Marcela Villavella e Barbara Corsetti

Lúcia Bins Ely

Marcela Villavella


Caoan Goulart (clarinete) e Leandro Oliveira (violão)


Gurizada do Grupo de Poesia da Casa Amarela Zero
Fotos: Iria Boufleur


A POETA QUE LEVA UM PÁSSARO

 ANINHADO EM SUAS MÃOS.


Os poetas, em geral, têm apenas um problema.
E atenção, trata-se de um problema sério.
Um problema sério com a palavra amor:
Eles se queixam de forma constante:
ou amam demais,
ou amam de menos,
nunca na medida certa.
Mas nessas duas falas, atenção (ojo, como dizem os espanhóis)! Eles sempre fingem, sem nenhum tipo de vergonha, não ficam nem de bochechas coradas, ou com voz trêmula, ou com os olhos piscando. Sua posição é de se negarem a nos fornecer qualquer outro sinal, indicativo ou pista por onde possamos pegá-los em flagrante, com o dedo nessa invenção.
Se um alfaiate, bem alto, de terno preto e metro de cor amarela pudesse medir a palavra amor nos versos de um poeta e ainda que considerasse também o anverso, escreveria muito feliz no seu velho caderno de anotações:
amor dois pontos = palavra certa
observação - nada sobra nada falta
E para quê um alfaiate tiraria as medidas da palavra amor?
Talvez para vesti-lo com um projeto futuro de esperança, ou para vesti-lo com palavras vindouras, aquelas que ainda não foram pronunciadas, por que o amor é isso, diz a poeta Marcela Villavella, o amor é um nome que não se pode recordar, é um nome que virá, talvez, por isso para ela, o amor não seja certa palavra, mas a palavra certa em sua medida exata.  E nisso entre as  palavras que são de foca e de esponja marinha, sua poesia já trilha um caminho líquido, um caminho diferente.
E se acaso encontramos esse amor como um vagabundo ébrio na madrugada, como um desses humanos que vão por aí tropeçando entre os valos, personagens dos quais também nos fala o poeta brasileiro Cruz e Souza, se o encontramos numa dessas ruas ou num desses tetos onde bate o vento, ou dançando esse pensamento triste que é o tango, ele já será outro a se nomear.
Então a poeta de TE  BUSCA Y TE NOMBRA se põe propositadamente debaixo da chuva e espera, com as mãos abertas em forma de concha, que um pássaro muito, muito pequeno pouse nelas e ali faça seu ninho. Talvez esse pássaro seja um beija-flor (um colibri), ou outro, não sabemos, ela não nos entrega esse segredo. Mas pela maleabilidade de suas palavras supomos que seja um beija-flor abelha, esse bichinho delicado, que voa para frente e para trás e faz bruscas piruetas para se ver livre de algum perigo.
               Mas se não sabemos exatamente de que pássaro se trata,  sabemos do efeito do seu vôo nas mãos da poeta: ele lhe impõe que fale muito baixinho para não assustá-lo, que vá pelas ruas lentamente, passo a passo, para que ele não caia. E ainda, de vez em quando, ele impõe à poeta que colha um pouco do néctar de alguma rosa para o  alimentar.
Ambos vão assim, sob a chuva e com o sol às costas. Vão  mansamente falando de coisas que talvez ele - o pássaro - não quisesse nem saber – para que me falas desses assuntos, diria ele, que sei eu dos medos ou dos dedos marcados na minha cara ou dos 10 mandamentos que não se cumprem ou do hospital e desse morto aí na calçada cujo jornal no rosto lhe anuncia a morte.
A poeta pouco se importa com o blá blá blá do pássaro. Ela sabe que seu coração está em outro centro, seu coração late no centro da linguagem. E desse lugar ela escreve ao lado do amor outras palavras certas: vida e morte. Então, não são quaisquer palavras de que fala a poeta. E se falasse de outras palavras, seriam erradas? Não, por que o poeta sempre fala das palavras certas e não de certas palavras. Bem, talvez essa questão nem seja importante e talvez o certo e o errado sejam irrelevantes para essa que baixinho fala ao pássaro. Ela mesma diz: a verdade, às vezes, é bem pouco interessante. 
O problema é do pássaro, é ele quem exige essas palavras certas. Entre 100 papéis, 500 palavras, 4000 maneiras de dizê-las, 12000 tentativas de acalmar o clima e 1 milhão de gotas caindo na esquina, o pássaro exige essas palavras – vida e morte.
E por que ele faz esse pedido?
Simplesmente por que há um pranto dividido em dois: há uma dor de nascer e há uma dor de morrer – É um golpe de sorte voltar a amanhecer.  O começo é de água e o final também o é, diz a poeta. Sim, é um golpe de sorte voltar a amanhecer.  
Nesse caminho entre dois mares e com seu beija-flor vai com segurança, como se houvesse amado alguém (E será que não amou, será que não caminha entre gotas desse amor, será que ao cumprir o desejo desse a quem ela decidiu dar amor “a manos llenas” não ama?).
E cada vez a poeta se distancia mais desse mundo onde quase tudo é de plástico: ela se distancia do patinho inflável, do controle remoto da televisão, de um colarzinho muito bonito que algumas vezes a enfeita, do pote de queijo que utiliza no café da manhã, ela se distancia porque tudo é de plástico, menos esse pranto, esse mesmo que se divide em dois.  
Mas para o pássaro, não são de plástico as palavras da  poeta, por que são elas  que o retiram de um abandono quiçá,  sem piedade.
A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul. Poeta e pássaro se encontram com Rimbaud para juntos porem em xeque a linguagem -  e o escrever não é vaidade ou poder é apenas poema.
Sim, mas o que importa um poema se não há mercado aberto para nenhuma mãe, nem bar para nenhum irmão, se não há nenhum filho bastardo para encher o berço, se não há nem pai legítimo que ponha comida na mesa, que importa se há colheres de sopa para nenhum comensal?
Que importa se existem agulhas cravadas em nossos sonhos e é penoso dizer “te amo” com uma voz estrangeira, que importa se a dor da guerra segue matando os filhos da guerra e fere, mesmo que à distancia, a dor de nascer entre os mortos?
A poeta diz tudo isso como se se tratasse de outra coisa, como se se tratasse de se ir ao bosque se querendo ir ao mar, e tudo  com uma delicadeza de vôo de beija-flor.
 Mas, assim como Eliot, ela anda por uma terra desolada, mas, sabemos, não vai sozinha. Para Eliot “Abril é o mais cruel dos meses, germinando lilases da terra morta, misturando memória e desejo, avivando agônicas raízes com a chuva da primavera”. Para Marcela Villavella nesta vida atada a algumas cartas onde o destino se sabe jogar e se perde, nesta tendência a viver demais, a beber demais de todos os copos de cicuta do mundo, nesse naipe que nos falta há um “Ás” de espada que nos olha, mas não nos mata. 
E com esse verso ela se autoriza a seguir por ruas de paredes herméticas e janelas intermináveis por onde também vão milhares de homens de sapatos recém lustrados, homens que levam um jornal debaixo dos braços e um livro no bolso, ruas por onde vão milhares de bonecas russas. E, no meio de tudo isso, não há olhos para ver o cavalinho de madeira feito caquinhos no quarto.
Todavia,  apenas a poeta vai pela chuva e com o pássaro entre as mãos. Estará perdida? Não, não está. Sentou-se numa mesa com sonhos, pesadelos e palavras e, ao seu lado, um menino agita uma bandeira – e, nesse momento, é o pássaro que lhe aponta o poema.
Fracassar se pode sempre, ela diz ao pássaro, e assim existem feridas que ela cuida para que se fechem e outras que mantém abertas para não se esquecer de quem foi. Ao mesmo tempo ela teme que a frase “estou feliz” a persiga por toda a vida como um desígnio não cumprido. Não nos enganemos,  ela é valente e segue e não abandona o pássaro. 
O poeta argentino Juan Gelman um dia disse de Paco Urondo, cuja morte se deu no enfrentando da ditadura Argentina, e a quem a Poeta dedica o poema “El Pajarito”: -corrigia muito seus poemas, soube porém que o único modo que o poeta tem de corrigir sua obra é ” corrigindo-se a si mesmo”, se reescrevendo, quer dizer, buscando os caminhos que vão do mistério da língua ao mistério da gente.
Bem, é isso que faz Marcela Villavella no livro “Te busca y te nombra”, entre as palavras já está entre as pessoas e as  ama com a verdade nas mãos.
Agora não há mais chuva, as nuvens sobem demasiado alto, demasiado longe, demasiado céu. Não há mais desculpas para aninhar o pássaro, mas a Poeta se recusa a deixá-lo, pois na busca que empreendeu    se encontrou nesse longo vôo, nesse longo bater de asas.      
A ele, ao pássaro, Marcela Villavella deve o poema. E ele, o pássaro, sabe da dívida impagável que tem com ela, por isso  é, ele mesmo, um verso.
Y todo termina con una esperanza, con una dilación
      –"ha estado bien"–, o en un bostezo, o en otro
      lugar donde es menester el coraje ( Paco Urondo) a coragem de, como poeta,  levar um pássaro entre as mãos.
                          Assim, se o tango é uma tristeza que se dança, a poesia de “Te busca e te nombra”  é uma dor que se escreve.

                          Obrigada, Marcela, por tuas mãos aninharem esse beija-flor.


Eliane Marques

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